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terça-feira, 26 de maio de 2015

Um destino, uma vida, um sonho esquecido.


Destino.
Á ternura pouca
Me vou acostumando
Enquanto me adio
Servente de danos e enganos.

Vou perdendo morada
Na súbita lentidão
De um destino
Que me vai sendo escasso.

Conheço a minha morte
Seu lugar esquivo
Seu acontecer disperso

Agora
Que mais
Me poderei vencer?
“Mia Couto”.

Um destino, uma vida, um sonho esquecido.

                      Macbeth estava dormindo. Uma noite gelada. Um inverno rigoroso. Macbeth tinha experiência com o frio. Sabia que não daria tempo para chegar ao seu barraco na Favela São Benedito. Era lá sua morada. Um quartinho. Ganhou de um amigo que foi trabalhar em uma cooperativa e melhorou de vida. O jeito era dormir próximo ao Viaduto do Socorro. Era sua segunda casa. Estava acostumado, mas o frio doía até nos ossos. Seu carrinho de mão comprado com tanto sacrifício ele não abandonava nunca. No barraco fez uma passagem maior na porta para ele passar. No viaduto ou em outro lugar ele amarrava uma corrente fina com um cadeado a sua perna. Ninguém nunca tentou roubá-lo, mas sabe-se lá.

                  Nunca disse para ninguém seu nome de batismo. Se auto intitulou MacBeth. Claro, quem ali poderia ter lido ou assistido a peça de William Shakespeare “Tragédia Macbeth”? Ele não era afeminado. Nada disto. Mas achou interessante se chamar assim. Nunca quis lembrar seu passado. Ele era página virada em sua vida. Recordar o que foi não ia ajudar. Gostava de sua nova vida de sem teto. Não devia obrigação a ninguém. Fazia seus próprios horários e mesmo enfrentando dificuldades nas ruas da solidão, ela se sentia feliz. Muito mais quando... Melhor esquecer. De vez em quando a soldadesca dava-lhe uns tapas, uns chutes e o levavam preso só para roubar o pouco que ganhava. Mas MacBeth não reclamava. Quem escolhe uma estrada para seguir não tem jeito. Mudar em certa parte do caminho é retroceder.

                   No dia seguinte apesar do frio MacBeth voltou às lides de catador. Uma chuvinha miúda caía molhando tudo pela frente. Passou próximo a um restaurante de um real. Eram dez da manhã. Eles só abriam as onze. Esperou calmamente. Amarrou sua carrocinha no ferro de uma placa de estacionamento proibido. Alguns conhecidos já estavam na fila. Calado ele ficou só observando todos. Conversava pouco. Só o necessário. Foi então que ele a viu. Incrível! Continuava linda! Seu coração bateu forte. – Deus! Não deixe que ela me reconheça. Ela passou com um jovem de braços dados. Sorria. Ele sabia que era o mais lindo sorriso que já tinha visto. Ela nem olhou para os lados. Ele abaixou a cabeça. Sentiu o velho perfume J’Adore de Dior que ele sempre usava. Ficou inebriado. Que saudades! Malditas saudades!

                  Não era seu dia. Quando chegou na hora de pagar viu que não tinha um centavo. Tentou conversar com alguns na fila. Todos diziam não poder ajudar. A fome corria solta. Mas e daí? Não era a primeira vez. Pegou sua carrocinha e foi em direção ao Butantã. Atravessou a ponte da Cidade Universitária. Olhou lá embaixo a Marginal Pinheiros. Quantos carros. Milhares deles. Quantas vezes ele passou por ali com seu velho Mercedes e seu bom amigo e chofer o Juventino. Ao se aproximar da entrada da USP avistou um saco que parecia estar cheio de latinhas de cerveja. Chegou primeiro e guardou no fundo de sua carrocinha. O dia inteiro não rendeu muito. A fome apertava mais e mais. Passou em frente ao Bar do Sacristão. Parou. Olhou para dentro. Zé Ruela o viu. Pegou dois pão velhos com manteiga e trouxe para ele. Bom amigo o Zé Ruela. Se o patrão dele visse o colocava na rua.

                 Chegou ao seu barraco por volta das oito da noite. Mal cumprimentou um e outro. Estava tão cansado que dormiu logo. Nem fez seu café que sempre fazia. Levantou cedo. Separou o lixo reciclado, tinha alguns fios de cobre de dentro da sacola com as latas vazias de cerveja ele encontrou um saquinho pequeno com vinte cartelas de jogos de loteria. Jogou-os de lado. Pegou sua carrocinha e colocou o que poderia vender. Seu Pedreiro pagou a ele onze reais. Tudo bem. Já dava para comer alguns dias. À noite em seu barraco olhou novamente as cartelas. Pegou três. Colocou no bolso. Ia conferir. Depois dar risadas. Claro que quem as fez já tinha conferido. Eram de três meses atrás. De novo levantou cedo. Pé na estrada.

                Na Praça Pan-americana viu uma lotérica. Entrou sob os olhares raivosos das moças atendentes. Ele tomava banho duas vezes por semana. Mais não dava. Usava um balde que enchia de água na porta do Barraco do Jacinto. Conferiu o primeiro. Não estava entendendo. O danado do bilhete marcava os seis pontos. O numero havia ganhado sozinho. O valor? Oitenta e cinco milhões de reais. Fechou os olhos. Saiu dali calado. E agora? O que devia fazer? Porque o dono jogou os bilhetes fora? Claro ele sabia que ninguém poderia provar que ele tinha roubado os bilhetes. Era entregar e receber. Nem foi trabalhar aquele dia. Passou a noite acordado. Não teve jeito. O passado batia com força na sua mente. Maldito passado.

                MacBeth sabia que era um empresário de sucesso. Marcondes seu sócio era seu amigo de infância. Estava noivo de Maria Rita a quem amava profundamente. O casamento seria em menos de um mês quando ele foi preso. Por quê? Marcondes o acusou de roubo. Roubar o que? A própria firma. Eu? Nunca faria isto Marcondes. Claro ficou lá só uma semana. Quando saiu viu que o prédio que tinham a fábrica e o escritório tinha sido queimado. Não sobrou nada. O seguro disse que havia cinco meses que não se pagava nada. Marcondes fez tudo premeditado.

                 Procurou Maria Rita. Ela o desprezou. Morava sozinho em um apartamento nos jardins. Porta trancada. Uma placa escrita – A disposição da justiça. Foi ao Banco Bradesco. Sua conta zerada. No Itaú a mesma coisa. No Santander só duzentos reais de saldo. Procurou Marco Antonio seu amigo e ele tinha mudado para a Europa. Ficou desesperado. Prometeu matar Marcondes. Arrumou uma faca simples. Foi até a casa dele. Tinha sumido também. Roubou tudo dele e foi embora. Sentou em baixo do Viaduto Santa Filomena e chorou. Chorou muito. Uma mão em seu ombro. Virou. O rosto de uma mulher. Feia, desdentada. Desmemoriada. Suja e demente. Disse a ele para acreditar em Deus. Ele tudo resolve. Ele riu. Deus? Que Deus?

                  Largou tudo que tinha, pois agora não tinha nada. Resolveu mudar de vida. Porque não? Nunca foi um sem teto, mas nunca é tarde para começar. Levou Santinha a desmemoriada consigo a procurar comida. Ela ria dele e ela sim é que o ensinou os macetes dos sem tetos. Aprendeu. Deu duro. Sempre trabalhou. Era inteligente, sabia como ninguém dirigir e coordenar uma fábrica. Agora era diferente. Era saber matar à fome, o frio, a falta de um teto. Santinha morreu seis meses depois. Uma forte pneumonia. Correu com ela no Pronto socorro do Jaçanã. O socorro foi tarde demais. Afinal era negra, desmemoriada, suja e com um cheiro horrível. Ninguém ligou. Foi enterrada como indigente. Ele foi ao enterro e chorou.

                  Entrou na Caixa Econômica Federal na Rua João Casagrande. Os vigilantes não o deixaram entrar. Ele mostrou o bilhete. Um deles pediu para ver. Ele não deixou. Sabia o que ia acontecer. O Gerente Sênior viu a algazarra. Mandou trazê-lo até sua presença. Conferiu o bilhete. Deu a ele um grande sorriso. Onde achou o bilhete? Não achei. Comprei e esqueci-me de conferir. O gerente tentou um golpe que não deu certo. Começou uma lenga-lenga de como ele devia administrar o dinheiro. Ele foi enfático. Abra duas poupanças. Em uma deixe um milhão, na outra coloque os 84 milhões restantes. O gerente tentou negociar. – Faça o que estou dizendo. Colocou no bolso dois mil reais. Pegou sua carrocinha. O primeiro sem teto que viu deu para ele. Ele saiu rindo a toa.

                  Passaram-se dois anos. MacBeth abriu novamente sua fábrica de parafusos inoxidáveis para aviões. Exportava para a Europa. Um dia Dona Mercês sua secretária disse que tinha um tal de Marcondes querendo falar com ele. Mandou-o esperar. Pediu que dois vigilantes subissem ao seu escritório. Marcondes entrou. Quando o viu teve pena. Era um rato em forma de gente. Magro, tossindo e pedindo perdão. Não queria dinheiro só o seu perdão. Ele não sabia o que dizer. Mandou Dona Mercês dar a ele vinte mil reais e pediu a ele para sumir de sua vida. Ele agradeceu e sumiu. Dizem que a vingança é um prato que se come frio. Mas ele não queria vingança.

                   Uma tarde jantava no Baby Beef Rubaiyat na Alameda Santos. Foi atendida por uma garçonete.  Quando ela o viu e ele olhou para ela não havia dúvida, era Maria Rita. Não a desprezou. A tratou como uma garçonete. Ele não sabia o que fazer.  Quando saiu deixou uma boa gorjeta. Viu que ela chorava. Ele ainda a amava, mas não havia volta. Resolveu dar uma festa. Chamou todos seus amigos mendigos e sem tetos. Alugou um salão. Chamou oito seguranças. Contratou o melhor bufê da cidade. Todos se divertiam. Alguém contou para a policia que a droga corria solta. Cercaram o Bufê. Uma correria dos sem tetos. A policia abriu fogo. Ele sentiu algum queimando em seu peito. Perdeu o ar. Caiu ao chão. Estava morto.

                     Marcondes na esquina ria baixinho. Já tinha feito seus planos. Ainda guardava o contrato de sócio antigo. Uma pequena falsificação e tudo que era dele passaria em seu nome. Dito e feito. Quatro meses depois assumiu. Mandou dona Mercês embora. Contratou uma secretária nova, gostosa e sapeca. O tipo que precisava para divertir em seu escritório. Na semana seguinte a Senhorita Valenska disse que tinha uma moça querendo falar com ele. Ficou intrigado. Mandou entrar. Maria Rita entrou atirando. Deu nele seis tiros. Morreu na hora. Jogou a arma no chão. Saiu correndo. Filho da puta, dizia. Recebeu o que merecia. Na porta do prédio foi cercada pela policia. Desobedeceu a ordem de parar. Bastaram três tiros e Maria Rita caiu no asfalto molhado. Chovia fino. Um frio enorme. Ele estava por ali. Abraçou Maria Rita e saíram andando pelas nuvens que encobriam o céu. Passos pequenos, calmos e se dirigiram para o outro lado da vida. O que aconteceu depois só o céu pode contar.  


Que Feliz Destino o Meu MOTE 

 «Que feliz destino o meu 
Desde a hora em que te vi; 
Julgo até que estou no céu 
Quando estou ao pé de ti.» 

GLOSAS 

Se Deus te deu, com certeza, 
Tanta luz, tanta pureza, 
P'rò meu destino ser teu, 
Deu-me tudo quanto eu queria 
E nem tanto eu merecia... 
Que feliz destino o meu!    

Às vezes até suponho 
Que vejo através dum sonho 
Um mundo onde não vivi. 
Porque não vivi outrora 
A vida que vivo agora 
Desde a hora em que te vi. 

Sofro enquanto não te veja 
Ao meu lado na igreja, 
Envolta num lindo véu. 
Ver então que te pertenço, 
Oh! Meu Deus, quando assim penso, 
Julgo até que 'estou no céu. 

É no teu olhar tão puro 
Que vou lendo o meu futuro, 
Pois o passado esqueci; 
E fico recompensado 
Da perda desse passado 
Quando estou ao pé de ti. 
António Aleixo.

sábado, 16 de maio de 2015

O fabuloso espólio de Madame Jovina dos Prazeres



Inventário das sombras

O que deixou o espólio?
Algo além do imbróglio 
de rebuscar documentos
e reencontrar a estirpe
antes mero acessório?

O que sugeriu o espólio?
Que utilizemos 
o que nos restou de dignidade
numa derradeira homenagem?

O que exigiu o espólio?
Que alguns naveguem 
pelos vales das lágrimas
enquanto outros
no inventário das sombras
não partilhem sequer a dor premeditada?
(Luso poemas)
O fabuloso espólio de Madame Jovina dos Prazeres


            Lovelino não parava de pensar. Não pretendia e não queria nada do espolio de Madame Jovina dos Prazeres. Ninguem acreditou em seu amor por Madame Jovina. – Que se danem pensava. Agora ali, esperando uma recompensa? Um absurdo. O que mais ele queria é que ela estive ali com ele. Mas sabia que isso não iria acontecer. Ela tinha ido para sempre. Agora só as saudades lhe faziam companhia. Doces lembranças de um passado. Foi uma exigência do Comendador Praxedes da Aluvião. Achou que foi mais do que um convite. Uma intimação isso sim. Recusar? Impossível. Sentia-se um peixe fora d’água ali sentado na poltrona enorme de couro marrom, legítimo couro inglês (Deve ter custado uma nota!) importado. Nem olhava para os outros que estavam ali. Não eram amigos nunca foram.

            Sua mente não parava de buscar o passado. Não fora ninguém até o dia que a conheceu. Uma diferença de idade enorme. Poderia ter sido sua mãe, mas acabou sendo sua amante. Amante? Era muito mais. A mulher de sua vida eterna. Quantos anos se passaram? Muitos. Achava que mais de trinta. Afinal estava com vinte e cinco e agora com cinqüenta e cinco não esperava mais nada da vida. Se houvesse um espolio, que os filhos dela tomassem conta. Ele não queria nada. Ao perdê-la perdeu a vontade de viver. Perdeu o sentido da vida.

           O Comendador Praxedes da Aluvião além de juiz da comarca da cidade de Santa Genoveva era também o tabelião. Muito respeitado. Um vasto bigode que ele fazia questão de enrolar com os dedos sempre que estava junto a alguém. Usava sempre um jaquetão preto, uma gravata borboleta, uma botina “Jeca-Tatu” preta, não tinha carro e adorava sua charrete que dizia ter sido da Corte Inglesa. Ninguém o desobedecia. O ultimo que o desafiou está enterrado no cemitério da cidade, em uma cova nos fundos, com uma plaquinha que diz – Aqui jaz, um merda que morreu como um merda! Risos. É verdade. Quem duvidar pode ir lá ver.

           Lovelino voltou no tempo e lembrou quando viu Madame Jovina pela primeira vez. Nos seus vinte e cinco anos foi fazer uma entrega de vinhos importados que chegou pelo navio Pirineu no porto de Suape em Recife. Vindos da Itália, comprado especialmente para ela. Fora uma viagem longa. Mas seu chefe o explicou da sua responsabilidade e da figura do Comendador, o intermediário de Madame Jovina. Quando a viu seu coração bateu forte. Ela nem o notou. Agradeceu e ele se foi pensando que aquela era a mulher de sua vida.         Claro, era uma boate de ricos. Cheia de luzes coloridas, cortinas vermelha de seda, um amplo salão com poltronas também vermelhas de couro importado e as mulheres, eram lindas. Novinhas, sempre sorrindo com roupas transparentes. Maquiadas. Vendendo o que tinham de melhor. Mas ele não se interessou por nenhuma delas. Só por Madame Jovina. Uma morena de cabelos presos em coque, um rosto angelical apesar dos seus quarenta e poucos anos, uma face corada, lábios carnudos, vermelhos, olhos verdes, como se fossem duas esmeraldas incrustadas naquele rosto maravilhoso. Seus dentes quando sorria eram perfeitos.

          Estranhou, pois Santa Genoveva não era uma cidade grande. Mas depois soube que ali tinha as maiores fazendas de café de todo o país. Exportavam para o mundo todo. Coronéis, Comendadores, Duques, Marqueses, Viscondes eles eram assim chamados. Era fácil comprar um titulo naquela época. Quando se instalou em Santa Genoveva, Madame Jovina sentiu um ambiente propício para montar a melhor boate de mulheres de todo o nordeste. Procurou primeiro o Comendador Praxedes da Aluvião. Ele a olhou ressabiado. Mas gostou do que viu. Logo desejou estar com ela em uma cama enorme, fazendo estripulias mil. Afinal ainda era jovem. Menos de cinqüenta anos. Madame Jovina tinha experiência. Desde que fora expulsa de casa a vinte e cinco anos atrás, só porque se apaixonou por um português fogoso, sabia que sua vida seria aquela. Não uma prostituta qualquer. Mas teria classe. Seria chamada de madame.

           Lovelino largou o emprego em Recife e partiu para Santa Genoveva. Com a cara e coragem procurou Madame Jovina e se declarou. Disse que não queria que ela correspondesse, bastava aceitá-lo como empregado. Faria qualquer coisa. Ela não precisava pagar. Refeições e um quartinho para dormir. Em pouco tempo ele dormiu com ela. Um sonho. Achava que era o homem mais feliz do mundo. Ela o ensinou como proceder na cama. Nunca foi o amante perfeito. Sempre fora um “janota” nestas coisas. Nunca soube se Madame Jovina o amava. Nunca perguntou e ela nunca disse. Mas passaram a dormir juntos e ele já ajudava na direção da casa. Ela comprou muitas roupas para ele. Ensinou como dar o nó em uma gravata, a escolher a cor certa, a se portar como um cavalheiro. Ensinou como tratar as “funcionárias” para que elas dessem o máximo do seu corpo aos clientes famosos. Conheceu a nata dos grandes fazendeiros. Tinha grande respeito pelo Comendador Praxedes da Aluvião.

          Aos poucos foi ficando intimo de Madame Jovina. Intimo de sua vida, de suas escolhas, de como guardava as economias. Mas tinha dúvidas. Acreditava que ela não devia entregar tudo para o Comendador Praxedes da Aluvião. Afinal em Recife tinha ótimos bancos e lá seu dinheiro estaria mais seguro. Mas Madame Jovina ria e dizia – Calma meu amigo. Eu sei o que faço. Não nasci ontem. Que seja pensava. Na cidade ficou conhecido por todos. Era respeitado. Afinal se alguém disse algum contra ele não entraria nunca mais na casa de Madame Jovina. Ela lhe dava algum dinheiro semanalmente, que ele sabiamente guardava em um banco em Recife. Não era muito, mas dava para ele fazer umas economias. Um dia uma surpresa. Ela o apresentou a duas crianças. Manuelita de oito anos e Andresinho de dez. – São meus filhos disse. Estudam na Europa. – Na escola Tasis, uma tradicional escola Suíça. Localizada na região italiana da Suíça, em Lugano. Lovelino não sabia o que dizer. Achou as crianças lindas, mas elas o esnobaram.

           Um mês depois voltaram para a escola. Era assim. Uma vez por ano apareciam. Lovelino nunca teve ciúmes deles. Afinal eram filhos. A Cesar o que é de Cesar. Mas seu coração a cada dia ficava mais profundamente apaixonado por Madame Jovina. Seus olhos brilhavam em sua presença. Na suíte dela, na enorme cama de casal estilo Luiz IV, (importada da França) ele acreditava estar em outro mundo. Madame Jovina fazia sexo devagar, sem pressa. Gostava de ficar minutos e minutos sentada no membro dele de olhos fechados suspirando, seus lábios molhados até que um grito forte e ele sabia que ela estava terminando.

            Um dia lera um livro onde conheceu a historia da mitologia grega dos Doze Deuses Olímpicos. Moravam no Monte Olímpo. Eram peritos na arte, no amor, nos sonhos, e ele se transportava para ali, quando estava nos braços de Madame Jovina. Achava ela superior a Atena e Afrodite. Ah! Afrodite a deusa do amor. Ela teria muito a aprender com Madame Jovina. Ele não era nenhum Zeus, Posidon, Neptuno, ou mesmo Apolo. Não era bonito. Achava-se feio. Tinha o nariz achatado, seus lábios eram grosseiros, seu cabelo mais para crespo do que liso. Era alto, talvez um metro e setenta e oito. Não sabia. Meio cambota. Risos. Feio mesmo.

             Os anos se passaram. Cinco, dez, vinte anos. Os filhos de Madame Jovina cresceram. Manuelita virou uma linda moça. Puxou a mãe. Andresinho também se tornou um rapaz bem afeiçoado. Agora era medico. Ela se formou em Ciências Humanas. Não gostavam de Santa Genoveva. Visitavam a mãe esporadicamente. Ambos moravam agora na Itália. Ambos solteiros. Nem cartas escreviam. Lovelino notou que ela chorava por eles não darem notícia. Mas ela nunca reclamou com Lovelino. Madame Jovina um dia se desentendeu com o Coronel Liturgo. Ele queria que Márcia Lavínia ficasse com ele. Mas ela estava com Jaubert, por quem tinha se apaixonado.

             Era uma situação incomoda. Márcia estava ali para servir a clientela. Agora só vivia com Jaubert. Madame Jovina já a havia repreendido. – “Se gosta dele vá viver com ele”. Mas Jaubert era um perfeito gigolô. Não queria nada. Só mulheres e que elas o sustentassem. Lovelino resolveu agir. Deu uma prensa em Jaubert. Márcia caiu em prantos. Madame Jovina interveio e deu em nada. Tudo continuou como antes. Até que o Coronel Liturgo aprontou uma arruaça em pleno salão. Abarrotado de gente. Gritava, dizia palavrões. Lovelino foi até ele. Recebeu um soco na cara. Sem consultar Madame Jovina, Lovelino o agarrou pelo paletó e o jogou fora da casa. Ele sacou um revolver e atirou em Lovelino. O tiro pegou de raspão, mas Lovelino tomou dele a arma e lhe deu uns pontas-pé no trazeiro. Foi à conta. Lovelino encontrou um inimigo de morte. Agora era ele ou Lovelino. Melhor que fosse o coronel. Armou uma emboscada a noite. Deu cinco tiros no Coronel Liturgo e dois em seu capanga. Todos desconfiaram dele. O delegado o inquiriu várias vezes. Mas era amigo de Madame Jovina. O assunto morreu por aí.

              Lovelino pegou fama. “Jagunço de Lampião” Todos tinham medo dele. Madame Jovina até gostou. Agora em sua “casa” haveria maior respeito. Mais dez anos se passaram. Cada dia mais Lovelino sentia que seu amor crescia. Era como se Madame Jovina fizesse parte dele. Não ficava muito tempo longe dela. O dia inteiro a procurando pela casa. Tornou-se até inconveniente. Ela lhe disse um dia. - Meu amigo Lovelino. Não seja assim, você sabe que eu gosto de você. Aqui nunca fiquei com ninguém. Mas você está sendo “chato” não sai de perto de mim.

            Lovelino se tocou. Sabia que não era “dono” dela. Poderia colocar tudo a perder. Tudo que conquistou. Madame Jovina estava com setenta e cinco anos. Mantinha ainda aquela pose altiva, aquele semblante de uma dama irresistível. Lovelino sorria por dentro. Fosse o que fosse era feliz. Muito. Um dia foi a Recife fazer umas compras para Madame Jovina. Ficou por lá cinco dias. Quando voltou encontrou um grande ajuntamento de pessoas em frente à boate. Assustou. Correu e subiu as escadas. Madame Jovina estava deitada na cama de casal, e seus olhos fechados.

            Lovelino se aproximou chorando. Minha Deusa! Meu único amor! Você não pode partir! Não pode morrer. Morrerei contigo se você se for. Mas Madame Jovina estava morta. Morte natural. Lovelino chorava como um menino. Estava com cinqüenta e cinco anos. Um homem apaixonado. Seu amor partiu. Não havia motivo para ele continuar vivendo. As moças da boate choravam com ele. Não tinham idéia do que iria acontecer. Foram dois dias inconsoláveis para Lovelino. O funeral ele assistiu soluçando. Ninguem para consolá-lo. Os filhos de Madame Jovina não estavam presentes. Ele tinha passado um telegrama. Sabia que não chegariam a tempo.

            A necrópole estava vazia. Todos já haviam ido. Lovelino não. Sentado no mausoléu de Madame Jovina ele não parava de soluçar. Pensou em tirar sua vida ali. Mas era um cristão. Não acreditava que morrendo iria encontrar Madame Jovina. Sabia que não. Sabia que um dia iria encontrá-la. Mas só Deus deveria saber como e onde. Ficou ali no cemitério a noite toda. Os responsáveis vieram dizer para ele que era hora de fechar. Ele não respondeu. Fechou os olhos e a viu em sonhos. Ela dizia que ele fora seu melhor amigo. Quando ele se fosse do mundo ficariam juntos novamente.

            O dia amanheceu. Uma garoa fina. Não havia trovões. O céu cinzento. Lovelino foi para casa. Um ultimo adeus a Madame Jovina. Uma pequena rosa ele colocou em seu mausoléu. Reuniu as moças no salão vermelho. Disse que não tinha vontade de continuar. Iria esperar os filhos dela para saber o que fazer. Que elas tirassem umas férias de vinte dias. Depois ele iria dizer o que foi resolvido. Lovelino ficou só na boate. Mandou fazer uma foto enorme dela. Passava horas e horas sentado na cama de Madame Jovina. Olhando a foto dela e sentindo sua presença. Parou de chorar. Alguém devia tomar as providencias necessárias para tudo.

           Agora estava ali. Na sala de espera do Comendador Praxedes da Aluvião. Ao seu lado Manuelita e Andresinho. Os filhos de Madame Jovina nem olhavam para ele. Sérios. Mal conversavam entre si. Lovelino se sentia desconfortável. Mas não tinha saída. O Comendador Praxedes da Aluvião o havia convocado para essa reunião. Iria dizer o que Madame Jovina tinha decidido de sua fortuna. Ele não queria nada. Nunca pediu nada. Suas economias no banco em Recife seriam suficientes para ele viver o resto de sua vida. Nunca mais iria se unir a uma mulher. Para ele só tinha havido uma. Madame Jovina. Ninguém poderia substituí-la. Fechou os olhos e pensava do que seria sua vida daí em diante. O passado se fora. Não iria enterrá-lo. Nunca. Ela iria viver em sua mente para sempre. Fora parte de sua vida. A mais importante. A mulher de seus sonhos. O amor de sua vida. Queria sair dali logo, mas tinha de aguardar. Era surreal tudo que estava acontecendo com ele.

        Finalmente o Comendador Praxedes da Aluvião os chamou ao seu escritório. Queria ficar em pé, ouvir e partir. Mas foi obrigado a sentar como os demais. – Que todos fiquem sabendo, que no ano da graça de Nosso senhor Jesus Cristo, no dia 22 de agosto de 1977, dona Madame Jovina dos Prazeres, aqui esteve junto com as testemunhas Sr. Mario Tenedes e Senhor Escrutino Xandoval, ditou seu testamento conforme abaixo escrito e que leio para todos vocês. De plena posse de minhas faculdades mentais, quero que toda minha fortuna, seja assim dividida: – Tudo que tenho em mãos do Comendador Praxedes da Aluvião seja entregue em partes iguais, aos meus filhos Manuelita dos Prazeres e Andresinho dos Prazeres. Também as terras e fazendas localizadas no vale do Imbu, próximo ao Rio Quitanda, seja inventariada e divida entre eles. Caso eles acharem melhor fazer uma divisão entre si, estou plenamente de acordo.

          O Comendador Praxedes da Aluvião fez uma pausa. Olhou para Lovelino como a dizer, você não ganhou nada. Mas não foi bem assim. Continuou o Comendador Praxedes da Aluvião – Que minha boate, seus pertences, tudo que ali se encontra seja doado ao meu amigo Lovelino Santo Angelo, inclusive a escritura da casa, e que ele prometa que irá cuidar das moças, dirigir e dar prosseguimento a tudo àquilo que amei em vida. Lovelino se assustou. Não esperava aquilo. Os filhos de Madame Jovina se levantaram e se retiraram. Lovelino nunca mais os viu. Não era o que queria. Pensou em vender tudo e ir embora por esse mundo de Deus. Mas não foi esse o desejo de Madame Jovina. Que assim seja. Sua vontade será cumprida. Lovelino cumpriu sua sina. Nunca mais sorriu. Passava horas e horas sentado na cama Luiz IV de Madame Jovina olhando sua foto na parede. Dizem às moças que ali trabalhavam que ele conversava com ela horas e horas.

        Conta-se uma fábula, que Lovelino “enricou”. Comprou um titulo de Marques e se tornou o Marques de Lovelino Loreal. Diz também à fábula que ele deixou os cabelos crescerem, brancos, meios crespos. Um enorme bigode que ele enrolava com os dedos. Comprou um jaquetão azul, gravata borboleta, se tornou um profeta dizendo que os fins dos tempos estavam próximos. Não saia do quarto de Madame Jovina. Ali foi encontrado um dia. Sentado. Mas mortinho da silva.  Seus olhos estavam abertos. A olhar profundamente o retrato de Madame Jovina. Um sorriso em seus lábios grossos dizia que havia encontrado o que procurava no outro lado da vida. Ninguem soube mais nada, pois não sabiam também de onde ele teria vindo, se tinha parentes, nada. As moças resolveram fazer uma sociedade da casa. Descobriram uma carta de Madame Jovina. Nela ela dizia que sempre amou Lovelino e ficaram intrigadas. Porque nunca disse isso a ele?

        Setenta anos depois, nasceram em uma cidade chamada Pontal do Amor, no interior do Ceará, dois jovens, filhos de pais diferentes. Ela foi batizada de Jovina. Ele de Lovelino. Um dia se encontram em um jardim da praça da cidade. Ela colhendo flores, ele olhando as borboletas. Dizem, ou melhor, a fábula conta que se apaixonaram e que viveram felizes para sempre. Mas fábulas são fabulas. São contadas por escritores, poetas e trovadores. Eu não posso dizer se é verdade ou não. Que cada um faça sua própria historia e dê o final que achar válido. Para dizer a verdade, eu não acredito em fábulas! Risos. 
  

Quanto nos cobra o poema:
- por uma sinfonia de metáforas
- por uma visitação à alma
- por um deslumbre de vôos?

Ou desapegado da matéria 
doa-nos, ele, complacente
as suas inefáveis asas?

O preço do poema, senhores,

é o poeta quem paga!


(Luso poemas)

quarta-feira, 6 de maio de 2015

A canção de Bernadete



A FLOR E A FONTE

"Deixa-me, fonte!" Dizia
A flor, tonta de terror.
E a fonte, sonora e fria
Cantava, levando a flor.

"Deixa-me, deixa-me, fonte!”
Dizia a flor a chorar:
 “Eu fui nascida no monte...
“ Não me leves para o mar”.

E a fonte, rápida e fria,
Com um sussurro zombador,
Por sobre a areia corria,
Corria levando a flor.

"Ai, balanços do meu galho,
“ Balanços do berço meu;
 “Ai, claras gotas de orvalho
“ Caídas do azul do céu!..."

Chorava a flor, e gemia,
Branca, branca de terror.
E a fonte, sonora e fria,
Rolava, levando a flor.

"Adeus, sombra das ramadas,
“ Cantigas do rouxinol;
 “Ai, festa das madrugadas,
“ Doçuras do pôr-do-sol;

"Carícias das brisas leves
“ Que abrem rasgões de luar...
 “Fonte, fonte, não me leves,
“ Não me leves para o mar!"
*
As correntezas da vida
E os restos do meu amor
Resvalam numa descida
Como a da fonte e da flor..
Vicente de Carvalho

A canção de Bernadete

           O sol estava vermelho junto às nuvens escuras que chegavam de mansinho naquela tarde fria de final de inverno. Bernadete se dirigia para sua casa depois de fazer sua peregrinação de casa em casa pedindo ajuda para sua mãe. Não tinham o que comer. Seu pai morreu de tuberculose e sua mãe ia pelo mesmo caminho. Mas Bernadete não sabia disto. Apenas oito anos e ninguém para explicar a ela que sua mãe partiria em breve. Não fora um dia ruim. Ganhou um pouco de arroz, um pouco de macarrão. Não era nada, mas daria para uns dois dias as duas se alimentarem. Bernadete não estudava. A escola não aceitou com medo que ela passasse a doença para as outras alunas.

           Não tinham luz elétrica e água encanada. Ela tirava a água necessária na cisterna no fundo do quintal. Bernadete cantava. Estava feliz. Dois dias sem ter o que comer. Sua mãe lhe ensinou a cantar nas horas difíceis. Cantava e sonhava com a música que aprendeu com ela. Luar do Sertão. Sozinha pela rua quase deserta ela cantava. “Não há, oh gente, não luar Como esse do sertão. Oh que saudade do luar da aminha terra, lá na serra branquejando, folhas secas pelo chão...”. Bernadete amava cantar esta canção. Ao entrar em casa saudou a mãe carinhosamente. Pela primeira vez não teve resposta. Foi até ao quartinho e sua mãe inerte. Não falava. Ela balançou chamando Mamãe! Mamãe! Era o fim. Ela sabia. Sua mãe se fora. Ela a tinha prevenido.

           No dia seguinte enterraram sua mãe no cemitério da Saudade no centro da cidade. Uma senhora da prefeitura se encarregou de tudo. Os olhos de Bernadete estavam vermelhos de tanto ela chorar. Agora não chorava mais. Esqueceu-se de pensar para onde ia, qual seria seu destino. Não conhecia ninguém. Nem sabia se tinha algum parente. Sua mãe nunca disse nada. Cantou baixinho quando sua mãe desceu a sepultura para sua última morada. “Este luar cá da cidade tão escuro, não tem aquela saudade do luar do meu sertão!”. A mulher da prefeitura disse para ela arrumar suas coisas. Ela ia morar com Dona Heloisa mulher do Seu Nivaldo o tabelião. Bernadete não disse nada. Não conhecia ninguém. Quem sabe seria feliz lá?

            Dona Heloisa a olhou de uma maneira que a fez tremer e baixar a cabeça. Disse – Menina, eu não gosto de preguiça. Não gosto de gente respondona. Não gosto de gente suja. Portanto faça o que eu mandar e vamos viver bem as duas. Curto seco e grosso. Nada mais. Nem uma palavra de carinho. Perdera sua mãe e agora perdera também alguém que a pudesse acariciar e dizer palavras como sua mãe dizia – Eu gosto de você, eu amo você. Bernadete recebeu as tarefas do dia. Varrer e passar pano molhado em toda a casa. Limpar todos os dias o quintal das folhas das arvores. Arrumar as camas, lavar as roupas dos meninos. Esqueci-me de dizer, Dona Heloisa era mãe de Larita e Lourenço. Não reclamou. Ambos eram quase da mesma idade dela com exceção de Lourenço. Dois anos mais velho. Quem sabe seriam amigos?

           Queria ser amiga deles, mas Dona Heloisa não deixou. – Você é empregada eles são os patrões. Fique no seu lugar. Bernadete quase ficou triste, mas lembrou de sua mãe e cantou: - “Não há oh gente, oh não luar...” isto a fazia lembrar-se da sua mãe e assim ela sorria. Seu Nivaldo nunca a cumprimentou. Nem olhava para ela. Era normal. Ela aceitava. Dona Heloisa não quis colocá-la na escola. Não disse o porquê. Bernadete ficava quando tinha folga escrevendo seu nome. Achou um livrinho de beabá jogado no lixo. Em pouco tempo aprendeu a ler sozinha. Ela era muito inteligente.

           O tempo passou. Os anos passaram. Os filhos de Dona Heloisa foram estudar em um colégio interno na capital. Bernadete torcia contando os dias e as horas quando eles de férias voltavam para casa. Ela se sentia feliz com eles ali. De vez em quando Larita falava com ela, mas Lourenço nunca. Estava ficando um belo rapaz. Com seus dezesseis anos já era bem alto, seus cabelos loiros caiam na testa e era um charme vê-lo balançar cabeça para tirá-los dos olhos. As moças da cidade morriam de amores por ele. Bernadete estava com quatorze anos. Nunca foi bonita. Tinha uma perna mais curta que a outra e andava mancando. Seu rosto não era feio apesar de ter os cabelos crespos e por isto ela mesma o cortava para não ficar grande demais. Tinha um lindo sorriso e isto encantava quem não a conhecia.  Dona Heloisa a presenteava uma vez ou outra com as roupas de Larita que não serviam mais nela. Bernadete se deliciava. Sorria e cantava: “E a gente pega na viola que ponteia, e a canção é a lua cheia a nos nascer do coração!”. Não conseguia fazer amigos. Não podia sair. Quando saia era para ir à padaria ou ao armazém.

            Bernadete nunca esqueceu o semblante de sua mãe. Dormia em um quartinho no fundo do quintal que ela arrumou ao seu modo. Gostava quando estava lá, pois fez amizade com um canário Belga amarelo que vinha sempre cantar para ela na janela. Não tinha cortinas. Não podia ter. Mas tinha uns vasinhos com flores silvestres que ela regava diariamente. Agora não era mais só o canário amarelo. Um sabiá e um Pássaro Preto se juntou aos outros. Eles sempre pela manhã acordavam Bernadete com seu cantar na janela e ela contente corria para saudá-los.

             Bernadete levantava cedo. Muito. Tinha de fazer o café, ir à padaria, e voltar à velha rotina da casa. De uns tempos para cá Dona Heloisa a deixava passear até a praça aos domingos à tarde. Gostava muito. Via gente, meninos brincando e ela sorria para eles com sua alegria infantil, pois a pureza de Bernadete persistiu por todos os anos da sua vida. Ela olhava as meninas a brincarem no pula-pula, no balanço e a descer e subir o escorregador. Quando todos sorriam ela cantava. Nunca deixou de cantar a canção que sua mãe ensinou para ela. “Não há, oh gente...”.

             Bernadete quando fez vinte anos ainda continuava a mesma. Sempre alegre, sempre fazendo tudo naquela casa. Agora cozinhava também, pois Dona Heloisa teve um problema nas pernas e não podia andar. Ficava em uma cadeira de rodas azucrinando o dia inteiro sua vida. Bernadete ficou mais encorpada. Seus seios cresceram. Suas pernas apesar de uma mais curta ficaram mais grossas. Seu cabelo ainda crespos cortados curtos lhe davam um aspecto faceiro e até sensual. Mas ela não sabia o que era isto. Um dia ao varrer o corredor ouviu gritos e correu para ajudar. Mas era no quarto de Dona Heloisa. Ela gemia e pedia mais. Bernadete não entendeu nada. O que seria? Um dia ao sair da igreja Sentou em um banquinho onde varias meninas conversavam. Falaram de sexo, de penetração, mas penetrar o que? Nunca tinha visto um membro de um homem. Ouvia falar, mas não sabia como era. Não era um assunto que ela queria pensar. Todas as noites ajoelhava próximo a sua cama e agradecia a Jesus por tudo que estavam dando a ela. Não passava fome, tinha um quartinho só dela e tinha os passarinhos que eram seus amigos. Ela quando deitava sentia os lábios de sua mãe a lhe beijar. Ela vinha todas as noites. Bernadete sabia. Dormia sorrindo!

              Um dia Lourenço chegou da cidade grande com uma moça linda. Faceira. Loira também e os cabelos compridos iam até sua cintura. – Meus pais, esta é Edna, minha esposa. Sua mãe levou um susto e seu pai quase caiu da cadeira. Bernadete sorriu para ela como a dizer – Seja bem vinda moça linda! Edna perguntou quem era Bernadete – Lourenço respondeu que não era ninguém. Uma empregada mal agradecida, pois deram tudo para ela e fazia tudo errado! Bernadete abaixou a cabeça e sem perceber começou a cantar baixinho – “A lua nasce por detrás das verdes matas...” – O que é isto Edna perguntou. Nada, ela é louca. Cuidado com ela.

               Um ano depois Lourenço deixava Edna sozinha em casa e ia para a Rua do Quebra Cachaça. Bernadete não sabia o que era isto, mas achou que não era boa coisa. Voltava tarde, bêbado e chingando todo mundo. Um dia chegou calado e foi até o quarto de Bernadete. Entrou e deitou com ela em sua caminha estreita. Bernadete assustou e ia gritar quando ele disse – Se gritar vou contar a todo mundo que você me chamou. E vão escorraçá-la daqui para fora. Rasgou sua camisola. Ela sentiu a dor da penetração. Foi forte. Ele logo parou, pois a molhou toda por dentro. Bernadete chorava baixinho. De dor e de vergonha. Lourenço arrumou as calças e foi embora. Por vários dias nem olhava para ela.

               Edna suspeitava que Lourenço tivesse feito “mal” a Bernadete. A maneira como ele procedia em casa junto a ela não dava para esconder. Notou que Bernadete quase não ria mais. Andava sempre triste, de cabeça baixa. Não demorou e a barriga de Bernadete começou a crescer. Dona Heloisa não perdoou. Queria a todo custo mandar ela embora. Uma “puta” isto sim dizia. Faltou com o respeito! Meu filho casado e ela nem pensou nisto? E minha filha o que vai dizer? Bernadete sempre ficava de cabeça baixa. Os olhos cheios de lágrimas, mas ela cantava sem ninguém ouvir – “E a gente pega na viola que ponteia...”.  Seu Nivaldo não deixou. E você nesta cadeira de rodas vai fazer tudo?

              Quando o filho de Bernadete nasceu, foi em outubro. À noite. Ninguém ajudou. Edna ouviu os gritos e correu a ajudar. O menino já havia nascido. Quando pegou o menino sentiu que era lindo! Não falou nada com ninguém. O levou para seu quarto e disse a Lourenço que ele seria filho dela, pois ele era o pai. Um susto. Lourenço não falou nada. Bernadete no outro dia tentou levantar. Lavou-se. Os pássaros cantavam para ela na janela apesar de sua dor e tristeza. Sentiu que toda a noite sua mãe estava lá. Sorrindo para ela e dizendo – Calma minha filha, sua recompensa não tarda. Bernadete com dificuldade voltou ao trabalho. Edna a chamou em um canto e disse que ia tomar conta do filho dela, bastava ela amamentar. Daria tudo a ele. Não iria faltar nada. – Você nunca teria condições de cria-lo! Bernadete chorou. Chorou muito, mas mesmo assim conseguiu cantar – “Este luar cá da cidade tão escuro, não tem aquela saudade do luar do meu sertão!”.

              Passaram-se os anos. Antônio Carlos cresceu. Bernadete o olhava com amor e carinho e sorria. Ele não gostava dela, sempre lhe virava as costas. Seu filho não sabia que ela era sua mãe. Nunca o beijou, nunca o abraçou. Viveu junto a ele até quando fez sessenta anos. Ele rapagão, bonito, forte, se formou engenheiro. Vinha em casa, trazia presentes para todo mundo. Para Bernadete não. Ela o olhava orgulhosa, seus olhos brilhavam. Lágrimas se faziam cair. Ela fazia tudo que ele pedia. Mas ele nem sequer lhe sorria. Mesmo assim ela cantava de alegria – “A canção e a lua cheia a nascer no coração!”.

             Um dia Bernadete começou a tossir, da tosse viu que sangrava. Tentou esconder. Dona Heloisa bem velha, mais de oitenta anos disse – Como sua mãe. Tuberculosa! Tire ela desta casa! Internem-na em um sanatório! Seu Nivaldo não deixou. Afinal Bernadete dedicou uma vida inteira a família, nunca teve nada, e agora por ela para fora? Dois meses depois, em uma manhã de sol brilhante, Bernadete ao acordar viu os passarinhos cantarem em sua janela, não era só os três, eram centenas. Foi uma surpresa. Ela nunca viu um dia tão bonito, ensolarado, lindas nuvens no horizonte. Parecia que estava em um enorme jardim e o perfume das flores era trazidos até sua janela por aragens refrescantes vinda do céu. A família veio correndo para ver o que era. Uma multidão de passarinhos a cantar próximo a janela de Bernadete. Entraram e a viram deitada inerte. Um fio de sangue escorria em sua boca. Estava morta.

              Bernadete os viu entrar tentou sorrir, ia pedir desculpas. Mas viu seu corpo na cama. Ia falar com eles, mas sua mãe chegou. Estava toda vestida de branco. Atrás uma luz brilhante com vários anjos a cantar e os passarinhos cantaram também. O que é isto perguntou Dona Heloisa, assombração? Saiu rápido em sua cadeira de rodas. Seu Nivaldo estava boquiaberto. Larita que estava visitando não suportou a forte luz que vinha da janela. Lourenço tremia e Edna sorria. Antônio Carlos não estava em casa. Tinha viajado para o “estrangeiro”.

              Os vizinhos acorreram à casa dos Nivaldos. Eram milhares de passarinhos. Nunca se viu tanto e todos voando em volta da casa de Dona Heloisa. Cantavam e faziam uma enorme algazarra. Bernadete ficou em dúvida. Ficar ali ou ir com sua mãe? Sentiu tristeza em deixar aquela família que apesar de tudo ela os amava. Sua mãe sorria e dizia, - vem minha filha, eles ficaram amparados apesar do que fizeram a você. Todos passamos por isto. Eles irão um dia também passar as dificuldades da vida. E Bernadete seguiu sua mãe. A luz forte e brilhante as acompanhou enquanto desapareciam no horizonte. A passarada foi atrás e nunca mais voltaram naquela casa.

             Bernadete ficou deslumbrada com a cidade onde foi morar. Era linda, toda colorida e cheia de flores. Não sabia que tinha tanta gente que a conhecia. Sempre diziam – Olá Bernadete. Seja bem vinda! Esperamos muito este dia. Que Jesus esteja com você! E todos sempre sorrindo. Eram centenas que iam visitá-la em sua casinha branca cheia de rosas perfumadas de todas as cores. Eles sorriam para ela, a abraçavam e beijavam carinhosamente. Ela sentiu ali que o amor era o elixir da vida que sustentava a cidade. Sentia que agora pertencia a uma família, uma família enorme, linda, a família de Jesus. Ele havia atendido seu pedido e as suas preces. Viu que sua tosse não existia mais. Viu que também se vestia de branco e adorava. E as tardes, ela e sua mãe sentavam na varanda e cantavam. Não se sabe como, uma viola invisível dedilhava a canção e os passarinhos seus amigos faziam um coro tão lindo que a transformavam na mais bela canção do mundo. Era Maravilhoso. Impossível descrever e tão incrível de ouvir que toda a cidade do além parava para escutar a Canção de Bernadete:

Não há, oh gente  
oh não, Luar  
Como esse do sertão.

Oh que saudade  
Do luar da minha terra  
Lá na serra branquejando  
folhas secas pelo chão

Este luar cá da cidade  
Tão escuro  
Não tem aquela saudade  
Do luar lá do sertão

Não há, oh gente...
Se a lua nasce  
Por detrás da verde mata  
Mais parece um sol de prata  
Prateando a solidão


E a gente pega  
Na viola que ponteia  
E a canção  
É a lua cheia  
A nos nascer do coração