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domingo, 26 de fevereiro de 2012

A canção do adeus



Canção do Adeus

Digo-te adeus e talvez
Ainda te queira
Não sei se vou te esquecer,
Mas te digo adeus
Não sei se você me quis
Não sei se eu te quis
Ou talvez a gente se quis
Demais os dois.
Este meu carinho,
Apaixonado e louco.
Eu o semeei na minha alma
Para te querer a ti.
Não sei se te amei muito,
Não sei se te amei pouco.
O que eu sim sei é que nunca
Voltarei a amar assim.
Fico com teu sorriso,
Gravado nas minhas lembranças
Y o coração me diz,
Que não vou te esquecer.
Mas ao ficar sozinho,
Sabendo que perco você
Talvez comece a te amar,
Como jamais te amei.
Digo-te adeus e talvez,
Nesta despedida.
Meu sonho mais bonito,
Morra dentro de mim,
Mas te digo adeus,
Para toda a vida.
Ainda que toda a vida,
Continue pensando em você,
Continue pensando em você,
Continue pensando em você.
(Horacio Guarany – José Angel Buesa)

 A canção do adeus

              Há dias eu estava assim. Não me lembrava do meu passado. Não sabia de onde tinha vindo. Lembrar para que? Estava bebendo sempre, achava que não tinha parado nem um minuto. Eu devia ser rico, pois sempre tinha uns tostões para pagar a bebida. Sempre ficava ali naquela cadeira do canto do bar do Joel. Não olhava para ninguém. Não tinha motivo. Conhecia o Joel, o único, o barman que se tornou meu amigo. Ele era prestativo e educado. Não perguntava o que houve, não dava conselhos e não ficava encarando. Os outros bares que já tinha percorrido não.

                As madrugadas, Joel me colocava em um taxi e dava o endereço. Joel sabia. Não entendia como o porteiro do prédio me levava até meu apartamento. Abria a porta, me colocava na cama, tirava meus sapatos e ia embora. Devo ter sido boa pessoa. Todos eram gentis comigo. Acordava ainda de madrugada. Suando. Nem me lembrava do que sonhei, mas tinha sido um pesadelo. Tinha sido sempre assim. Levantava e olhava a mesinha. Lá estava meu uísque. Não podia faltar. Nem sabia quem o comprava.

                Já começava o dia bebendo. Sentia uma fraqueza no corpo, um vazio, como se fosse explodir para dentro. Devia haver um motivo. Tinha de haver. Mas minha mente se recusava a voltar ao passado. Eu tinha passado? Claro que sim. Todos têm. Parece a piada que dizia assim – “Ontem eu bebi para esquecer. Bebi tanto que esqueci. Hoje estou bebendo para lembrar”. Disso eu me lembro. Risos. Lembro até das outras piadinhas:

- Uma mulher me levou a beber... E eu nem agradeci!
- Aos que bebem para esquecer, favor pagar adiantado!
- Quem bebe morre, quem não bebe morre também, então vamos beber!

                  Eu lembrava, mas não ria. Não achava mais graça. Não achava graça de nada. Preferia estar morto. Acho que era um zumbi, a andar por aí como um morto vivo. Sem nada para fazer a não ser beber. Vesti uma roupa limpa. Uma camisa branca de mangas compridas, uma calça cinza esporte, um paletó também cinza esporte e achei um Mocassim marrom que poderia calçar sem meia.  Custei a achar a porta da sala. Nem fechei. Sabia que alguém a fecharia. Na porta do prédio todos me chamavam de doutor. Doutor? Doutor de que? Não respondia. Não sabia o que dizer.

                   Olhei para o céu, o sol estava se pondo. Tão tarde assim? Achei que tinha dormido pouco. Dormi o dia todo. Meu estomago pedia um bife. Um bife ou um drink? Acho melhor um drink primeiro. Já conhecia todos os bares e restaurantes ali perto. Não gostava de nenhum deles. Sempre me aconselhando. Dizendo o que tinha de fazer. Preferia o bar do Joel. Lá em me escondia em meu próprio corpo e nem sabia quem estava lá. Peguei um taxi. Só disse bar do Joel. Ele sabia onde era.

                    Parei na porta. Desci, uma jovem linda me cumprimentou. Boa tarde Doutor Marcio Basseto. Ela sabia meu nome? Chamei-a, ela sorriu e se aproximou. Você me conhece? Quem não conhece o senhor Doutor Marcio Basseto? O maior cientista vivo do país. Riu e se foi. Meu nome é Marcio? Boa bisca não devo ter sido para não me lembrar de nada. E ainda vivo? Estou morto e só ela não sabia. Risos. Entrei no bar do Joel. Foi para minha cadeira e minha mesa. Joel colocou uma garrafa na mesa. Um legítimo Buchanans 18 anos. Não era barato. Mas era o meu preferido.

                   Chegava ao anoitecer e quando Joel ia fechar eu saia. Sempre o mesmo taxi. O mesmo porteiro, o mesmo apartamento, a mesma cama e os pesadelos. Uma noite no bar do Joel, alguém sentou em minha frente. Doutor Marcio Basseto, permite-me. Permite-me? Já sentou “cacete” falei. Nem olhei, não precisava, varias vezes alguém aparecia para conversar e eu não queria. Conversar o que? Não sabia nada, não me lembrava de nada. Não conhecia ninguém. – Estou aqui a pedido de dona Eugênia Basseto. Olhei para ele. Na casa de seus 55 anos. Cabelos negros grandes com mechas brancas. Um bigode já ficando também branco. Todo o tipo de um advogado.

                   Doutor Marcio eu estou aqui em nome da Dona Eugenia Basseto. Levantei. Olhei para ele e sai do bar. Não estava a fim de conversar. Não estava a fim de lembrar. Não estava a fim de nada. Cacete! Ele devia saber. Não foi a primeira vez que me procurou. Se eu bebia era para esquecer e não ficar conversando com advogados idiotas. Não queria lembrar-se do meu passado. Pequei o primeiro taxi. Parou, entrei, para onde Doutor Marcio? Era sempre assim, eu era um “merda”. Não poderia me esconder nunca. Me leve ao inferno, por favor! Quem sabe o diabo me dá sossego?

                  Ele sabia. Levava-me ao bar do Joel de novo. Dava umas duas voltas e voltava ao ponto de partida. Minha garrafa de Buchanans estava lá. Joel sabia que eu ia voltar. Um dia desmaiei na mesa. Joel correu e chamou uma ambulância. Só acordei com o corpo em pandarecos num apartamento de um hospital. Em volta duas enfermeiras e um médico. Gritei – Meu uísque onde está? Ninguém respondeu. Tentei levantar não deu. Fios e buracos no corpo para todo lado. Chorei. Chorava querendo meu drink. Eles não diziam nada. Desmaiei. Acho que me sedaram.

                    Acordei calmo. Olhei o teto, não era do hospital. Um azul profundo. Não era teto ou era? Eu via o céu. Mas estava em uma cama. Meu corpo não doía. Não tinha fios ligados ao meu corpo. Olhei de lado e não vi ninguém. Muitas árvores. Muitas flores, bem perto uma bica de água doce corria e cantava sons intermitentes como se fosse uma obra de Bach. Johann Sebastian Bach. O meu preferido. Não sabia qual sonata, mas uns sabiás pousaram em uma árvore próxima. Canários rajados, amarelos e azuis faziam acrobacias no ar.

                   Onde estava? Uma nuvem branca se aproximava. Era ela. Tinha certeza. Maria Inês se aproximava com aquele seu sorriso que nunca esqueci. Ou já tinha esquecido? Junto a ela de mãos dadas, Darlene de um lado e Mauricio de outro. Todos sorriso se aproximando. Bach estava chegando ao auge com sua melodia. Minha cabeça começou a doer. Gritei alto. Não! Não deixe que ela se vá de novo!

                    Acordei suando. Gemendo. Médicos e enfermeiras do meu lado. Chega! Pelo amor de Deus! Não me cedem mais. Não estou agüentando! Eles não diziam nada. Apenas sorriam. Um sorriso enigmático. Porque não tiram minha vida? Matem-me ou me deixem ir para o meu lar. A mesa do bar do Joel. Lá pelo menos ele me entende. Ninguem dizia nada. Mamãe estava ali. Assim ela dizia. Claro lembrava que Já tinha dito que desaparecesse da minha vida. Nunca me ajudou. Sempre me odiou por ter casado com Maria Inês. Agora ficava sempre ao meu lado como uma ave de mau agouro.

                    Na minha mente, tocava harmoniosamente as Sonatas para flauta de Bach. Mas meu estomago pedia meu uísque. Malditos. Tragam meu uísque! Mas ninguém me atendia. Médicos e enfermeiras ali, feito idiotas sorrindo e me sedando. Dormi de novo. Uma sensação de alegria de novo. Lá estava Maria Inês correndo para mim, ao seu lado Darlene e Mauricio. A música aumentava o som. Pedia a Bach para não tocar tão alto as sonatas para flautas. Minha mente começava a gritar, o suor chegava. Tudo desaparecia. Meu Deus! Acho que estou louco. Uma bebida pelo amor de Deus! Pelo amor de Deus!

                    Naquele dia quanto acordei não havia médicos. Ninguém no quarto. Levantei cambaleando. Muitos fios. Arranquei todos. Estava amarrado com uma bata azul clara. A bunda de fora. Por baixo nada. Olhei a janela, três andares. Dava para tentar descer. Tinha saliências entre um andar e outro. Consegui chegar ao primeiro depois caí no vácuo. Não perdi os sentidos, mas a perna esquerda doía muito. Mesmo assim saí mancando. Peguei um taxi, nem precisei falar. Levou-me ao meu edifício. Zezé o porteiro abriu a porta e me conduziu ao apartamento.

                    Lá estava ela, linda, como a amava aquela garrafa. Corri até ela. Coloquei o liquido no copo. Não sei por que nunca bebi no gargalo. Talvez fosse um costume do passado. Não sabia. Sentei em uma cadeira. Fechei os olhos. Enchi o copo novamente. Estava melhorando. Sabia o que fazer. Um banho! Isso! Tinha mais de duas semanas que não tomava um. Escolhi uma camisa azul clara. Mangas compridas. Uma calça azul de mescla. Um paletó marrom esporte. O Mocassim de sempre.

                  Pela primeira vez resolvi ir ao bar do Joel a pé. Estava um ar gostoso. Já tinha bebido quatro drinks. Notei que todos que me olhavam me cumprimentavam. Devia ser muito conhecido ou tinha muitas dívidas. Meu estomago doía de fome. Nunca pensava em comer só beber. Vi na esquina um carrinho de cachorro quente. Quanto tempo não comia um? Acho que muitos e muitos anos. Ainda não sabia o motivo, mas agora ia tirar o atraso. Sentei no meio fio, comecei a comer um. Pela primeira vez senti o gosto.

                 Alguém sentou ao meu lado. Um mendigo. Sujo. Imundo. Um cheiro ruim. Não importei. Pedi ao moço do cachorro quente que fizesse um para ele. Ficamos ali os dois sem falar nada. Comemos quatro cachorros quentes. Levantei, tirei do bolso duas notas de cem, dei para o mendigo. Paguei com uma de cinqüenta ao moço do cachorro quente. Fique com o troco eu disse. Se tinha tanto dinheiro no bolso tinha que ser rico.

                Já estava escurecendo quando cheguei ao bar do Joel. Alguém na minha mesa. Não gostei. Joel me disse que a moça queria falar comigo. Não iria embora enquanto eu não atendesse. Merda! Merda! Fui até lá. – Diga logo, essa mesa é minha e não gosto de convidados. Ela levantou a cabeça, sorriu. Um sorriso de Mona Lisa. Estava gostando daquele sorriso. Não podia. Tinha um passado que não lembrava e que me proibia.

                Sentei. Ela me olhou dentro dos olhos. Tenho uma proposta disse. Obrigado, eu mesmo compro minha bebida. E não gosto de prostitutas. Nada disso completou – Minha empresa tem um bom salário a lhe oferecer se resolver voltar a trabalhar e largar a bebida. Olhei para ela profundamente. Proposta? A única proposta que quero fazer é com Deus se ele me aceitar quando partir desta para melhor. Ela completou - Vou lhe deixar um cartão. Qualquer coisa me telefone.

                Levantou-se e saiu rebolando. Pela primeira vez assim achava, senti um pequeno calor no corpo. Logo Joel trouxe meu uísque. Beberiquei devagar o primeiro drink. Não estava entendendo. Só fazia isso quando passava dos dez. Por mais de uma hora não sorvi ele todo. Estava pensando. Mas juro que não sabia em que. Minha mente se fechava quando tentava lembrar. Agora lembrava mais amiúde do meu pesadelo. No inicio o sonho mais lindo que um homem podia ter depois o seu pior pesadelo.

               Pedi ao Joel colocar Bach. As Sonatas para Flautas. Não sei por que a chamava da Canção do Adeus. Tinha de haver um motivo. Não sabia. Não lembrava. Que merda meu Deus! Desculpe Deus! Foi sem querer. Fechei os olhos. Lá estava ela, linda, sorrindo, flutuando em nuvens brancas levadas pelo vento. Juntos Darlene e Mauricio. Mas que diabos eram isso? Quem eram eles? Abria os olhos. Joel atrás do balcão, alguns outros bebendo nas mesas subseqüentes. Um reclamou da Sonata de Bach. Joel o mandou para o inferno. Ri baixinho.

               Hora de fechar Doutor. Joel agora me chamava de Doutor.  Levou-me até o taxi. Este me deixou na porta do meu prédio. Não vi o Zezé. Era outro porteiro. Onde está o Zezé? - Foi embora. Pediu demissão. Voltou para sua terra no norte. Dizia que lá se vive aqui se vegeta. Pela primeira vez ninguém me levou ao meu apartamento. Subi as escadas com dificuldade. Não quis ir de elevador. Achava que desta vez bebi menos. Precisava me exercitar. No segundo andar senti uma forte dor no peito.

                  Acordei de novo no tal hospital. Lá estavam duas enfermeiras e o médico. Em pé, feito três panacas. Olhando-me e sorrindo. Não diziam nada. Ao lado minha mãe. Dona Eugenia Basseto. Mãe? Que mãe? Quando conseguia me lembrar nunca pensava em amor, só em ódio. – Ela dizia você vai morrer assim, Marcio Basseto. Eu sei que é o que você quer. Mas não se foge assim dos problemas. Senti uma dor aguda de novo no coração. Médicos acorreram. Massagens cardíacas. Nada. Meu coração parou de bater.

Prólogo                                       

                 Há três anos atrás, os maiores jornais do país em letras garrafais de primeira página, traziam escritos – DOUTOR MARCIO BASSETO, O PRIMEIRO BRASILEIRO A GANHAR O PREMIO NOBEL. Comparavam-no a Pierre Curie e Maria Curie pelo estudo da radioatividade. A maior descoberta na época. O Doutor Marcio, sem ajuda governamental e muitas vezes gastando do próprio bolso comprovou que a explosão de um tipo específico de estrela no fim de sua vida (supernova) e a análise da luz emitida nessas situações, demonstra que o universo cresce de forma acelerada e não cada vez mais devagar como se supunha.

                 A nação estava em polvorosa, pois nunca esperavam que um brasileiro pudesse ganhar um prêmio desta magnitude. Dois anos depois, os jornais traziam em letras garrafais na primeira página – O DOUTOR MARCIO BASSETO, É BALEADO NO JARDIM DAS ROSAS, E VIROU HEROI DO POVO. Seis terroristas tentaram matar os filhos do Presidente da Republica, que acompanhado de amigos e seguranças, estavam indo a pé para uma partida de futebol de salão.

                 O Doutor Marcio Basseto, sua esposa dona Maria Inês e seus dois filhos de seis e sete anos, Darlene e Mauricio, brincavam no jardim das Rosas quando os terroristas começaram a atirar. Doutor Marcio num ato heróico pegou um dos terroristas, tomou sua arma e matou três deles, outros dois ficaram feridos e o sexto fugiu, sendo capturado logo a seguir pela policia. Infelizmente os tiros dos bandidos mataram na hora a esposa e os filhos do Doutor Marcio. Ele levado ao hospital sobreviveu de uma bala alojada no cérebro que o fez perder a memória para sempre.

                 O Doutor Marcio Basseto e sua mãe dona Eugenia Basseto, pertenciam à aristocracia nacional. Ela sempre requisitada para festas beneficentes. Parece que não se dava bem com o filho. Doutor Marcio, filho único se distanciou de tudo e de todos quando resolveu se casar com Maria Inês uma jovem simples e humilde que morava em uma favela da capital.

                Os jornais do dia trouxeram a ultima noticia do dia, desta vez em uma pagina escondida onde se lia – Doutor Marcio Basseto. 1960 – 2008. O famoso físico Doutor Marcio Basseto, morreu ontem à tarde, no hospital Conrado Pacífico, vitima de parada cardíaca.  A família enlutada convida para o féretro que será realizado hoje, às quatro da tarde, no cemitério Jardim da Saudade.
        

Amor é um fogo que arde sem se ver, 
é ferida que dói, e não se sente; 
é um contentamento descontente, 
é dor que desatina sem doer.

É um não querer mais que bem querer; 
é um andar solitário entre a gente; 
é nunca contentar se de contente; 
é um cuidar que ganha em se perder.

É querer estar preso por vontade; 
é servir a quem vence o vencedor; 
é ter com quem nos mata, lealdade.

Mas como causar pode seu favor 
nos corações humanos amizade, 
se tão contrário a si é o mesmo Amor? 

Luis de Camões                    


terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

O fabuloso espólio de Madame Jovina dos Prazeres



Inventário das sombras

O que deixou o espólio?
Algo além do imbróglio 
de rebuscar documentos
e reencontrar a estirpe
antes mero acessório?

O que sugeriu o espólio?
Que utilizemos 
o que nos restou de dignidade
numa derradeira homenagem?

O que exigiu o espólio?
Que alguns naveguem 
pelos vales das lágrimas
enquanto outros
no inventário das sombras
não partilhem sequer a dor premeditada?
(Luso poemas)

O fabuloso espólio de Madame Jovina dos Prazeres

            Lovelino não parava de pensar. Não pretendia e não queria nada do espolio de Madame Jovina dos Prazeres. Ninguem acreditou em seu amor por Madame Jovina. – Que se danem pensava. Agora ali, esperando uma recompensa? Um absurdo. O que mais ele queria é que ela estive ali com ele. Mas sabia que isso não iria acontecer. Ela tinha ido para sempre. Agora só as saudades lhe faziam companhia. Doces lembranças de um passado.
         Foi uma exigência do Comendador Praxedes da Aluvião. Achou que foi mais do que um convite. Uma intimação isso sim. Recusar? Impossível. Sentia-se um peixe fora d’água ali sentado na poltrona enorme de couro marrom, legítimo couro inglês (Deve ter custado uma nota!) importado. Nem olhava para os outros que estavam ali. Não eram amigos nunca foram.

            Sua mente não parava de buscar o passado. Não fora ninguém até o dia que a conheceu. Uma diferença de idade enorme. Poderia ter sido sua mãe, mas acabou sendo sua amante. Amante? Era muito mais. A mulher de sua vida eterna. Quantos anos se passaram? Muitos. Achava que mais de trinta. Afinal estava com vinte e cinco e agora com cinqüenta e cinco não esperava mais nada da vida. Se houvesse um espolio, que os filhos dela tomassem conta. Ele não queria nada. Ao perdê-la perdeu a vontade de viver. Perdeu o sentido da vida.

           O Comendador Praxedes da Aluvião além de juiz da comarca da cidade de Santa Genoveva era também o tabelião. Muito respeitado. Um vasto bigode que ele fazia questão de enrolar com os dedos sempre que estava junto a alguém. Usava sempre um jaquetão preto, uma gravata borboleta, uma botina “Jeca-Tatu” preta, não tinha carro e adorava sua charrete que dizia ter sido da Corte Inglesa. Ninguém o desobedecia. O ultimo que o desafiou está enterrado no cemitério da cidade, em uma cova nos fundos, com uma plaquinha que diz – Aqui jaz, um merda que morreu como um merda! Risos. É verdade. Quem duvidar pode ir lá ver.

           Lovelino voltou no tempo e lembrou quando viu Madame Jovina pela primeira vez. Nos seus vinte e cinco anos foi fazer uma entrega de vinhos importados que chegou pelo navio Pirineu no porto de Suape em Recife. Vindos da Itália, comprado especialmente para ela. Fora uma viagem longa. Mas seu chefe o explicou da sua responsabilidade e da figura do Comendador, o intermediário de Madame Jovina. Quando a viu seu coração bateu forte. Ela nem o notou. Agradeceu e ele se foi pensando que aquela era a mulher de sua vida.

           Claro, era uma boate de ricos. Cheia de luzes coloridas, cortinas vermelha de seda, um amplo salão com poltronas também vermelhas de couro importado e as mulheres, eram lindas. Novinhas, sempre sorrindo com roupas transparentes. Maquiadas. Vendendo o que tinham de melhor. Mas ele não se interessou por nenhuma delas. Só por Madame Jovina. Uma morena de cabelos presos em coque, um rosto angelical apesar dos seus quarenta e poucos anos, uma face corada, lábios carnudos, vermelhos, olhos verdes, como se fossem duas esmeraldas incrustadas naquele rosto maravilhoso. Seus dentes quando sorria eram perfeitos.

          Estranhou, pois Santa Genoveva não era uma cidade grande. Mas depois soube que ali tinha as maiores fazendas de café de todo o país. Exportavam para o mundo todo. Coronéis, Comendadores, Duques, Marqueses, Viscondes eles eram assim chamados. Era fácil comprar um titulo naquela época. Quando se instalou em Santa Genoveva, Madame Jovina sentiu um ambiente propício para montar a melhor boate de mulheres de todo o nordeste.
        Procurou primeiro o Comendador Praxedes da Aluvião. Ele a olhou ressabiado. Mas gostou do que viu. Logo desejou estar com ela em uma cama enorme, fazendo estripulias mil. Afinal ainda era jovem. Menos de cinqüenta anos. Madame Jovina tinha experiência. Desde que fora expulsa de casa a vinte e cinco anos atrás, só porque se apaixonou por um português fogoso, sabia que sua vida seria aquela. Não uma prostituta qualquer. Mas teria classe. Seria chamada de madame.

           Lovelino largou o emprego em Recife e partiu para Santa Genoveva. Com a cara e coragem procurou Madame Jovina e se declarou. Disse que não queria que ela correspondesse, bastava aceitá-lo como empregado. Faria qualquer coisa. Ela não precisava pagar. Refeições e um quartinho para dormir. Em pouco tempo ele dormiu com ela. Um sonho. Achava que era o homem mais feliz do mundo. Ela o ensinou como proceder na cama. Nunca foi o amante perfeito. Sempre fora um “janota” nestas coisas.

           Nunca soube se Madame Jovina o amava. Nunca perguntou e ela nunca disse. Mas passaram a dormir juntos e ele já ajudava na direção da casa. Ela comprou muitas roupas para ele. Ensinou como dar o nó em uma gravata, a escolher a cor certa, a se portar como um cavalheiro. Ensinou como tratar as “funcionárias” para que elas dessem o máximo do seu corpo aos clientes famosos. Conheceu a nata dos grandes fazendeiros. Tinha grande respeito pelo Comendador Praxedes da Aluvião.
          Aos poucos foi ficando intimo de Madame Jovina. Intimo de sua vida, de suas escolhas, de como guardava as economias. Mas tinha dúvidas. Acreditava que ela não devia entregar tudo para o Comendador Praxedes da Aluvião. Afinal em Recife tinha ótimos bancos e lá seu dinheiro estaria mais seguro. Mas Madame Jovina ria e dizia – Calma meu amigo. Eu sei o que faço. Não nasci ontem. Que seja pensava.

          Na cidade ficou conhecido por todos. Era respeitado. Afinal se alguém disse algum contra ele não entraria nunca mais na casa de Madame Jovina. Ela lhe dava algum dinheiro semanalmente, que ele sabiamente guardava em um banco em Recife. Não era muito, mas dava para ele fazer umas economias. Um dia uma surpresa. Ela o apresentou a duas crianças. Manuelita de oito anos e Andresinho de dez. – São meus filhos disse. Estudam na Europa. – Na escola Tasis, uma tradicional escola Suíça. Localizada na região italiana da Suíça, em Lugano. Lovelino não sabia o que dizer. Achou as crianças lindas, mas elas o esnobaram.

           Um mês depois voltaram para a escola. Era assim. Uma vez por ano apareciam. Lovelino nunca teve ciúmes deles. Afinal eram filhos. A Cesar o que é de Cesar. Mas seu coração a cada dia ficava mais profundamente apaixonado por Madame Jovina. Seus olhos brilhavam em sua presença. Na suíte dela, na enorme cama de casal estilo Luiz IV, (importada da França) ele acreditava estar em outro mundo. Madame Jovina fazia sexo devagar, sem pressa. Gostava de ficar minutos e minutos sentada no membro dele de olhos fechados suspirando, seus lábios molhados até que um grito forte e ele sabia que ela estava terminando.

            Um dia lera um livro onde conheceu a historia da mitologia grega dos Doze Deuses Olímpicos. Moravam no Monte Olímpo. Eram peritos na arte, no amor, nos sonhos, e ele se transportava para ali, quando estava nos braços de Madame Jovina. Achava ela superior a Atena e Afrodite. Ah! Afrodite a deusa do amor. Ela teria muito a aprender com Madame Jovina. Ele não era nenhum Zeus, Posidon, Neptuno, ou mesmo Apolo. Não era bonito. Achava-se feio. Tinha o nariz achatado, seus lábios eram grosseiros, seu cabelo mais para crespo do que liso. Era alto, talvez um metro e setenta e oito. Não sabia. Meio cambota. Risos. Feio mesmo.

             Os anos se passaram. Cinco, dez, vinte anos. Os filhos de Madame Jovina cresceram. Manuelita virou uma linda moça. Puxou a mãe. Andresinho também se tornou um rapaz bem afeiçoado. Agora era medico. Ela se formou em Ciências Humanas. Não gostavam de Santa Genoveva. Visitavam a mãe esporadicamente. Ambos moravam agora na Itália. Ambos solteiros. Nem cartas escreviam. Lovelino notou que ela chorava por eles não darem notícia. Mas ela nunca reclamou com Lovelino. Madame Jovina um dia se desentendeu com o Coronel Liturgo. Ele queria que Márcia Lavínia ficasse com ele. Mas ela estava com Jaubert, por quem tinha se apaixonado.

             Era uma situação incomoda. Márcia estava ali para servir a clientela. Agora só vivia com Jaubert. Madame Jovina já a havia repreendido. – “Se gosta dele vá viver com ele”. Mas Jaubert era um perfeito gigolô. Não queria nada. Só mulheres e que elas o sustentassem. Lovelino resolveu agir. Deu uma prensa em Jaubert. Márcia caiu em prantos. Madame Jovina interveio e deu em nada. Tudo continuou como antes. Até que o Coronel Liturgo aprontou uma arruaça em pleno salão. Abarrotado de gente. Gritava, dizia palavrões.

             Lovelino foi até ele. Recebeu um soco na cara. Sem consultar Madame Jovina, Lovelino o agarrou pelo paletó e o jogou fora da casa. Ele sacou um revolver e atirou em Lovelino. O tiro pegou de raspão, mas Lovelino tomou dele a arma e lhe deu uns pontas-pé no trazeiro. Foi à conta. Lovelino encontrou um inimigo de morte. Agora era ele ou Lovelino. Melhor que fosse o coronel. Armou uma emboscada a noite. Deu cinco tiros no Coronel Liturgo e dois em seu capanga. Todos desconfiaram dele. O delegado o inquiriu várias vezes. Mas era amigo de Madame Jovina. O assunto morreu por aí.

              Lovelino pegou fama. “Jagunço de Lampião” Todos tinham medo dele. Madame Jovina até gostou. Agora em sua “casa” haveria maior respeito. Mais dez anos se passaram. Cada dia mais Lovelino sentia que seu amor crescia. Era como se Madame Jovina fizesse parte dele. Não ficava muito tempo longe dela. O dia inteiro a procurando pela casa. Tornou-se até inconveniente. Ela lhe disse um dia. - Meu amigo Lovelino. Não seja assim, você sabe que eu gosto de você. Aqui nunca fiquei com ninguém. Mas você está sendo “chato” não sai de perto de mim.

            Lovelino se tocou. Sabia que não era “dono” dela. Poderia colocar tudo a perder. Tudo que conquistou. Madame Jovina estava com setenta e cinco anos. Mantinha ainda aquela pose altiva, aquele semblante de uma dama irresistível. Lovelino sorria por dentro. Fosse o que fosse era feliz. Muito. Um dia foi a Recife fazer umas compras para Madame Jovina. Ficou por lá cinco dias. Quando voltou encontrou um grande ajuntamento de pessoas em frente à boate. Assustou. Correu e subiu as escadas. Madame Jovina estava deitada na cama de casal, e seus olhos fechados.

            Lovelino se aproximou chorando. Minha Deusa! Meu único amor! Você não pode partir! Não pode morrer. Morrerei contigo se você se for. Mas Madame Jovina estava morta. Morte natural. Lovelino chorava como um menino. Estava com cinqüenta e cinco anos. Um homem apaixonado. Seu amor partiu. Não havia motivo para ele continuar vivendo. As moças da boate choravam com ele. Não tinham idéia do que iria acontecer. Foram dois dias inconsoláveis para Lovelino. O funeral ele assistiu soluçando. Ninguem para consolá-lo. Os filhos de Madame Jovina não estavam presentes. Ele tinha passado um telegrama. Sabia que não chegariam a tempo.

            A necrópole estava vazia. Todos já haviam ido. Lovelino não. Sentado no mausoléu de Madame Jovina ele não parava de soluçar. Pensou em tirar sua vida ali. Mas era um cristão. Não acreditava que morrendo iria encontrar Madame Jovina. Sabia que não. Sabia que um dia iria encontrá-la. Mas só Deus deveria saber como e onde. Ficou ali no cemitério a noite toda. Os responsáveis vieram dizer para ele que era hora de fechar. Ele não respondeu. Fechou os olhos e a viu em sonhos. Ela dizia que ele fora seu melhor amigo. Quando ele se fosse do mundo ficariam juntos novamente.

            O dia amanheceu. Uma garoa fina. Não havia trovões. O céu cinzento. Lovelino foi para casa. Um ultimo adeus a Madame Jovina. Uma pequena rosa ele colocou em seu mausoléu. Reuniu as moças no salão vermelho. Disse que não tinha vontade de continuar. Iria esperar os filhos dela para saber o que fazer. Que elas tirassem umas férias de vinte dias. Depois ele iria dizer o que foi resolvido. Lovelino ficou só na boate. Mandou fazer uma foto enorme dela. Passava horas e horas sentado na cama de Madame Jovina. Olhando a foto dela e sentindo sua presença. Parou de chorar. Alguém devia tomar as providencias necessárias para tudo.

           Agora estava ali. Na sala de espera do Comendador Praxedes da Aluvião. Ao seu lado Manuelita e Andresinho. Os filhos de Madame Jovina nem olhavam para ele. Sérios. Mal conversavam entre si. Lovelino se sentia desconfortável. Mas não tinha saída. O Comendador Praxedes da Aluvião o havia convocado para essa reunião. Iria dizer o que Madame Jovina tinha decidido de sua fortuna. Ele não queria nada. Nunca pediu nada. Suas economias no banco em Recife seriam suficientes para ele viver o resto de sua vida.

           Nunca mais iria se unir a uma mulher. Para ele só tinha havido uma. Madame Jovina. Ninguém poderia substituí-la. Fechou os olhos e pensava do que seria sua vida daí em diante. O passado se fora. Não iria enterrá-lo. Nunca. Ela iria viver em sua mente para sempre. Fora parte de sua vida. A mais importante. A mulher de seus sonhos. O amor de sua vida. Queria sair dali logo, mas tinha de aguardar. Era surreal tudo que estava acontecendo com ele.

        Finalmente o Comendador Praxedes da Aluvião os chamou ao seu escritório. Queria ficar em pé, ouvir e partir. Mas foi obrigado a sentar como os demais. – Que todos fiquem sabendo, que no ano da graça de Nosso senhor Jesus Cristo, no dia 22 de agosto de 1977, dona Madame Jovina dos Prazeres, aqui esteve junto com as testemunhas Sr. Mario Tenedes e Senhor Escrutino Xandoval, ditou seu testamento conforme abaixo escrito e que leio para todos vocês.

         De plena posse de minhas faculdades mentais, quero que toda minha fortuna, seja assim dividida: – Tudo que tenho em mãos do Comendador Praxedes da Aluvião seja entregue em partes iguais, aos meus filhos Manuelita dos Prazeres e Andresinho dos Prazeres. Também as terras e fazendas localizadas no vale do Imbu, próximo ao Rio Quitanda, seja inventariada e divida entre eles. Caso eles acharem melhor fazer uma divisão entre si, estou plenamente de acordo.
          O Comendador Praxedes da Aluvião fez uma pausa. Olhou para Lovelino como a dizer, você não ganhou nada. Mas não foi bem assim. Continuou o Comendador Praxedes da Aluvião – Que minha boate, seus pertences, tudo que ali se encontra seja doado ao meu amigo Lovelino Santo Angelo, inclusive a escritura da casa, e que ele prometa que irá cuidar das moças, dirigir e dar prosseguimento a tudo àquilo que amei em vida. Lovelino se assustou. Não esperava aquilo.

          Os filhos de Madame Jovina se levantaram e se retiraram. Lovelino nunca mais os viu. Não era o que queria. Pensou em vender tudo e ir embora por esse mundo de Deus. Mas não foi esse o desejo de Madame Jovina. Que assim seja. Sua vontade será cumprida. Lovelino cumpriu sua sina. Nunca mais sorriu. Passava horas e horas sentado na cama Luiz IV de Madame Jovina olhando sua foto na parede. Dizem às moças que ali trabalhavam que ele conversava com ela horas e horas.

        Conta-se uma fábula, que Lovelino “enricou”. Comprou um titulo de Marques e se tornou o Marques de Lovelino Loreal. Diz também à fábula que ele deixou os cabelos crescerem, brancos, meios crespos. Um enorme bigode que ele enrolava com os dedos. Comprou um jaquetão azul, gravata borboleta, se tornou um profeta dizendo que os fins dos tempos estavam próximos. Não saia do quarto de Madame Jovina.

       Ali foi encontrado um dia. Sentado. Mas mortinho da silva.  Seus olhos estavam abertos. A olhar profundamente o retrato de Madame Jovina. Um sorriso em seus lábios grossos dizia que havia encontrado o que procurava no outro lado da vida. Ninguem soube mais nada, pois não sabiam também de onde ele teria vindo, se tinha parentes, nada. As moças resolveram fazer uma sociedade da casa. Descobriram uma carta de Madame Jovina. Nela ela dizia que sempre amou Lovelino e ficaram intrigadas. Porque nunca disse isso a ele?

        Setenta anos depois, nasceram em uma cidade chamada Pontal do Amor, no interior do Ceará, dois jovens, filhos de pais diferentes. Ela foi batizada de Jovina. Ele de Lovelino. Um dia se encontram em um jardim da praça da cidade. Ela colhendo flores, ele olhando as borboletas. Dizem, ou melhor, a fábula conta que se apaixonaram e que viveram felizes para sempre. Mas fábulas são fabulas. São contadas por escritores, poetas e trovadores. Eu não posso dizer se é verdade ou não. Que cada um faça sua própria historia e dê o final que achar válido. Para dizer a verdade, eu não acredito em fábulas! Risos.  
   
Quanto nos cobra o poema:
- por uma sinfonia de metáforas
- por uma visitação à alma
- por um deslumbre de vôos?

Ou desapegado da matéria 
doa-nos, ele, complacente
as suas inefáveis asas?

O preço do poema, senhores,

é o poeta quem paga!


(Luso poemas)

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

Meu destino, minha vida



Vida de drogado
Vagueias pelas ruas,
Perdido em teus pensamentos,
Já não sabes onde moras,
Pensas e agora choras,
Tua vida, feita de tormentos.

Já não te lembras como foi,
Deixaste-a entrar na tua vida.
No início era tudo mágico,
E depois da tua alma esquecida
Não vês como é tudo trágico.

Queres deixá-la e não consegues,
Quem te ajudará agora?
Ela não te irá perdoar
Tinhas tanto para viver lá fora…
E tu preso nela, a amargurar.

Pensas no fim que terás,
Procuras avidamente dinheiro,
Doente e desesperado,
No meio de uma noite escura,
Só a vida de drogado,
Não te permite ver tua figura.

luso poemas


Meu destino, minha vida

                           Disseram-me um dia que precisamos ter sorte para a vida nos sorrir sempre. Nunca acreditei nisso. Não acredito em sorte. Acredito em escolhas. Estas sim decidem nosso destino. Afinal sempre disseram que temos o livro arbítrio para decidir o certo e o errado. Às vezes tomamos um caminho incerto achando que era o certo. Tomamos decisões que nunca deveriam ter sido tomadas. Mas e daí? Voltar atrás? Pensar de novo se a escolha foi correta? Absurdo. Uma vez a decisão tomada não tem volta. Ou tem?

                           Tudo começou quando fiz dezesseis anos. Loira, esbelta, corpo de Afrodite, uma perfeita combinação da mulher perfeita. Acreditava que sabia de tudo. Tinha todas as respostas. Até minhas amigas me achavam uma auto didata. Risos. Não era nada. Se tivesse metade do juízo delas não seria o que sou hoje. Mamãe sempre implicando. Papai ausente. Resolvi estudar a noite. Todos os meus amigos assim o faziam. Minha mãe dizia que deveria continuar no colégio onde estava. Lutavam com dificuldade, mas conseguiam sempre pagar a mensalidade.

                            Foi à conta. No Colégio Santa Maria das Mercês, do Estado, conheci Venâncio. Amor a primeira vista. Risos. Amor? Quem dera se fosse hoje. Mas os jovens acreditam em tudo. Entreguei-me a Venâncio. Como dizem por aí “ficávamos” em todos os lugares. A princípio usava preservativo, depois a paixão tomava conta. Esquecia de tudo. Durante um ano foi assim. Mesmo com minha mãe proibindo eu saia com ele. Braços dados, amor daqui, amor dali, paixão, todos sabem como é. Começa assim depois não quero vê-la nunca mais.

                          Não culpo Venâncio. Ele foi à mão do meu destino. Senti que estava grávida. Medo terrível. Precisava falar com minha mãe. Venâncio comprou uns comprimidos que se tomasse abortaria. Medo maior ainda. O Padre Juventino dizia que ia para o fogo do inferno quem fizesse aborto. Não tomei as pílulas. Tomei coragem. Falei com minha mãe. Que mãe eu tenho. – Gracielle, agora não tem volta. Vamos enfrentar juntas. Lembre-se, sua vida vai mudar. Ser mãe não é como ontem. Vamos exigir muito de você.

                         Estava no sexto mês de gravidez quando Venâncio me convidou para fumar um baseado. – É bom! Experimente! Dei uma tragada. Tossi muito. Vamos meu amor, não tenha medo. Isso vai ajudar a você enfrentar daqui para frente sua gravidez. É. Venâncio era um ingênuo. Sempre foi. Começou com um amigo dele. Traficante. Ele não sabia. Fumei um, dois, três e foi só o começo. Achava lindo. Minha mente abria, o céu era mais azul. Os pássaros cantavam como nunca tinha visto.

                         No oitavo mês comecei a dar os primeiros “caldos” com Venâncio. Um medo terrível no início. Depois usava a seringa com perfeição. Foi o princípio de tudo. Ficava relaxada, um mundo continuava azul, o sol lindo, as flores tinham um perfume que parecia o início da primavera em um bosque florido.  Nunca errei a veia certa. Uma vez a bomba entupiu. Estava com uma ressaca grande. Forçava e Venâncio me ajudava. “Bombei” no lugar errado. Passei mal, desmaiei.

                       Após o uso contínuo eu queria algum mais pesado. A droga estava perdendo o efeito. Venâncio perdeu o emprego. Lico Boca Torta queria dinheiro. Nada de graça. Minha decadência já tinha hora certa para começar, risos. Já tinha começado há tempos. Roubava tudo que encontrava em casa e não demorou para que minha mãe e meu pai descobrirem. Não entendiam porque fazia isso. Não sabiam que estava usando drogas. Escondia as marcas em meus braços, escondia tudo. Mas minha mãe um dia me viu prostrada na cama, seminua, gemendo pedido uma picada, só uma eu dizia.

                     Ela chorou muito. Falou com meu pai. Foram super compreensivos. Levaram-me até o padre Juventino. Ele me convidou a fazer parte do grupo dos Acólitos Anônimos. Lá eles também discutiam as drogas. Vi que era uma irmandade de homens e mulheres que compartilhavam suas experiências a fim de resolver seus problemas. Participei em três. Venâncio só foi à primeira. Depois ele desapareceu. Sentia uma falta tremenda dele e mais ainda da embriaguês infernal das drogas.

                      Resolvi sair de casa a procura de Venâncio. Foi a partir daí que começou minha decadência. Agora vivia no submundo e a correr atrás das “paradas”. Encontrei Venâncio drogado na Boca do Lixo. Cracolândia melhor dizendo. Precisava da droga, precisava mais que tudo. Venâncio me aconselhou a prostituir. Mas com aquela barriga não seria fácil. Mesmo assim encontrei homens para fazer um “boquete” por cinco, dez até vinte reais. Meu Deus! Que coisa horrível! Mas logo me acostumei.

                      O dinheiro era pouco. Mudei para o crack. Diziam ser uma droga devastadora. Paciência. Eu não tinha mais escolha. Estava chegando ao fundo do poço. Ao limiar da condição humana. Quando não podia usar o crack falava coisas sem sentido. Davam-me tapas na cara. Riam de mim. Vivia cercado por outros drogados. Centenas deles. Ainda bem que eram mais humanos. Risos. Sim procuravam dividir comigo o pouco que tinham. Venâncio um dia ficou desacordado. A polícia chegou e o levou. Eu ainda podia correr.

                     Comecei a passar mal em uma noite de domingo. As primeiras contrações. Um guarda civil me ajudou. Colocou-me em seu veículo e me levou até o pronto socorro das Clínicas. Deixou-me na porta e sumiu. Perguntaram-me meu nome, minha família, mas eu não sabia responder. O crack tomava conta do meu corpo. Entorpecido. Agora não via mais flores, céu azul, pássaros cantando. Agora era como se fosse meu ar que faltava.

                      Meu neném nasceu duas horas depois. Vivo. Risos. Não merecia isso, mas os médicos disseram que ele podia não sobreviver. Dei o telefone da minha mãe. Ela chorou muito quando me viu naquele estado. Meu pai mesmo o durão que era, tinha os olhos cheios de lágrimas. Cinco dias depois me internaram em uma clinica. Na cidade mesmo. Meu corpo doía o tratamento não me fazia bem. Fugi dali quatro dias depois. Com a própria roupa do hospital fui para a Cracolandia. Fumei logo quatro bolinhas. Desmaiei.

                     Eu sabia que a droga matava. Que os traficantes só pensam em dinheiro. Que a droga oferecia a morte. Mas quem acredita nisso estando drogado? Como reagir? Como acabar com essa alienação terrível? Eu era uma inculta, manobrável, consumível, descartável, distante. A porcaria me fazia bem. Nem pensava mais em meu filho. Nem sabia se era um menino ou uma menina. Sentia-me sozinha na escuridão da noite. Tomava na veia, fumava sem parar. Crack, maconha o que me dessem ou podia comprar. Nem tudo agora me satisfazia.

                    Se eu morresse ali, eu não me importaria. Não tinha mais vida, família, não tinha motivos para sair dali. Ou será que tinha? Fiquei amiga e amante de Lico Boca Torta. Ele no meio dos drogados fazia sexo comigo de todas as maneiras. Eles riam. Outros queriam participar. Uma festa e eu ali, uma maldita prostituta drogada só querendo mais e mais drogas. Minhas roupas apodreceram. Nua os guardas me levaram a delegacia. Lá risadas, escárnio. Uma baixaria sem tamanho.

                   Chamaram minha mãe. Saí correndo nua pela rua. Não conseguiram me pegar. Uma senhora se apiedou. Comprou ali mesmo um jeans com uma blusa. Não precisa de calcinha nem sutiã. Voltei para o meu lar. A Cracolândia. Um mês, dois, três. Queria dormir. Nunca mais acordar. Agora queria morrer. Nada do que fizesse tinha sentido. Nenhuma delas fazia mais efeito no meu corpo. Gritava. Sorria, cantava uma demente a vagar pelas esquinas da vida. Uma drogada isso sim.

                    Conheci Raquel. Uma assistente social. Ficamos amigas. Ela não insistia como as outras para sair dali. Ajudava-me. Trazia comida que eu comia e vomitava em seguida. Meu corpo era pele e osso. Pesava cinqüenta e nove quilos. Agora nem trinta. Trouxe roupas. Deu-me um banho na rua mesmo. Com esponjas. Raquel, meu anjo! Caída do céu! Um dia chorei, chorei muito. Deitei em seu colo. Ela me afagou. Nunca perguntou pela minha família. Nunca me forçou a nada. Era minha amiga assim, do nada. Ou será que era meu Anjo da Guarda?

                    Quando ficava mais de seis horas sem droga, meu corpo tremia uma febre alta, a garganta seca, uma lassidão tomava conta do meu ser. Não sei, mas gostava dos venenos mais lentos, drogas poderosas e quando me entupia delas meus pensamentos e minhas idéias ficavam poderosas, insanas um sentimento de liberdade. Risos. Liberdade? A noite era a minha escuridão da vida. Não era noite, era o meu dia. Zumbís a andar pelas esquinas da morte.

                    Um dia quando Raquel chegou. Chorei. Chorava em prantos. Muitos dos miseráveis que eram meus amigos acorreram a me acudir. Acharam que era a Raquel. Ela não dizia nada, só me afagava. Ela é meu anjo, minha alma, minha salvação. Resolvi pedir a ela que me ajudasse. Queria sair daquele inferno. Não tinha escolhas, que ela fizesse o que bem entender. Era seu trabalho. Beijou-me no rosto. Fechei os olhos e sonhei com minha mãe. E minha filha? Será que estava viva?

                    Ela conseguiu uma internação em uma clinica para dependentes químicos, no campo, próximo a uma cidade que não conhecia. Dirigida pelo pastor Jamilton. Ele e sua esposa eram duas almas bondosas. Ali vi que outras moças como eu tinham muitas historias. Eu as ouvia. Parecia que não havia diferença entre eu e elas. Quando cheguei ali achei que não tinha mais dignidade, valor pela vida. O vicio maldito não me abandonava. Daria tudo por uma picada. Uma só. Gritava, implorava, O Pastor Jamilton e dona Clementina ficavam ao meu lado. Dando-me forças.

                  Com uma semana diminuiu um pouco aquela vontade louca de me drogar. Mas estava longe de alcançar o ideal e voltar para minha casa. Só no segundo mês avisaram minha mãe. Tinha encorpado um pouco. Agora com trinta e nove quilos. Diferente de quando eu cheguei com vinte e três. Ela me abraçou. Meu pai também. Ficamos os três abraçados por um longo tempo. Toda semana eles vinham. Raquel também vinha uma vez por semana. Dizia que não podia ficar comigo muito tempo. Muitas outras pessoas precisavam de sua ajuda.

                 Já se passaram cinco meses. Estou com quarenta e oito quilos. Dizem que meu sorriso voltou. Dizem também que me tornei amiga de todos ali. E uma tarde chegou um automóvel. Surpresa! Bela surpresa! Venâncio tinha sido convencido por Raquel a ir para aquela clinica. Nunca aceitou, mas quando soube que estava ali, resolveu experimentar. Eu ficava ao lado dele constantemente. Autorizada pelo Pastor Jamilton.

               Um ano, dois, três e eu e Venâncio nos casamos. Ele trabalha em uma loja de calçados. O proprietário evangélico, aceitava a pedido do Pastor Jamilton ajudar as pessoas drogadas. Sabia que a maioria não ficava lá. Recebiam o primeiro pagamento e voltavam de novo para a Cracolandia.  Isto não aconteceu com Venâncio. Quatro anos depois ele era gerente da loja. Mamãe sempre trazia Neusinha para ficar comigo. Minha filha!

               Agora moramos os três juntos. Uma família feliz. Longe das drogas. Espero que seja para sempre. Não digo que nos recuperamos. Longe disso. Mas eu e Venâncio somos um só. Amamos-nos muito. E Neusinha então? Era nossa luz, nossa estrela a indicar o novo caminho. Os novos tempos que já nos deram a alegria de volta e irão sempre trazer a brisa gostosa da manhã, a respirar pela janela da minha casinha e não mais na rua suja do passado.

                Ainda lembro-me dos meus amigos que lá ficaram. Rezo por eles todos os dias. Sei que não é fácil abandonar o vicio. Muitos já terão morrido. Outros irão morrer logo. Sei que Deus na sua suprema bondade irá amparar a todos. Eles sempre terão o direito de voltar aqui de novo. Uma nova vida. Um novo recomeço. Pois assim é a vida. Nascer, viver, morrer. Nascer de novo, pois esta é a lei!

A vida de um drogado

Mais um dia...
Será que vai ser o último?
Acordo com um bófia, a pontapear-me,
Lá vou eu, ver se uns trocos consigo arranjar...
Se não me derem, vou ter mesmo de roubar...
A hora da dose ta a chegar,
Ainda tenho de arranjar dinheiro, para a ir comprar...

Hoje ta tudo de pernas pro ar
Nem uns míseros tostões consegui arranjar,
Não me sinto com forças, para esperar
Vou ter mesmo, de roubar...

Tenho o interior do meu corpo em desespero,
Aqueles bichos de baixo da pele põem-me louco,
Estou todo arranhado, esta cena dói, e não é pouco

Mais uma vez roubei
Foi muito fácil, aqui nunca pensei
A bolsa da "velha", tava recheada
Já vai dar para uma dose, bem abonada

Já ta ali o gajo, á mesma hora de sempre,
É agora menino riquinho, á conta da gente,
Enfim, andam a ganhar dinheiro desta forma indecente...

Já tenho tudo o que preciso, a colher, a prata e o limão...
E esta grande dose, toda na minha mão...

Ah! Que sensação, depois de injetar parece que sou o dono do mundo...
E sem ela, não passo de um drogado vagabundo...

Vem um homem na minha direção,
O quer ele, de mim? Que não passo de um ladrão,

Era o filho da Cota, que gamei,
Deu me tantas, que nem me levantei...
Agora estou aqui, dolorido por dentro e por fora,
E fico aqui á espera que chegue a minha hora....
Cathia Chumbo