Bem vindo ao blog do Osvaldo

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sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

A tragédia de São Lourenço.


Eu?
Eu sou um enigma
O explícito do indecifrável
As chaves perdidas no bolso
O ''quiçá'' que precede a tragédia
Eu sou a tragédia!
Sou a tempestade que encanta pela avidez
E sou também os raios de sol que cessam a voracidade de céus aterradores
Eu sou o pulo do gato
E sou também a madeira bamba, afoita para forçá-lo
Eu sou a consequência de um caos certo e interminável.


A tragédia de São Lourenço.

                             Todos diziam que era uma tragédia anunciada. Ninguém nunca duvidou do desfecho e quando aconteceu disseram que demorou muito para acontecer. Tem fatos e relatos que tentamos entender o porquê e cada dia que passa mais ficou curiosos em saber que passamos anos ao lado de algumas pessoas e nunca as conhecemos mais profundamente. Só mesmo quando uma tragédia acontece é que sempre dizemos: - Nunca pensei que isto fosse acontecer. Estes sempre são vizinhos, colegas de trabalho, da igreja e ficamos pasmados com tais acontecimentos. Alfonso e Mariel para mim sempre foram às mesmas pessoas. Diferenciar um de outro era impossível. Tinham o semblante igual, cabelos da mesma cor. Olhos negros e profundos e a tez sempre lisa sem enrugar. Quase não falavam e quando se ouvia tinha que prestar atenção para entender. Era um bom dia, uma boa tarde e mais nada.

         Moravam em uma casa simples, na Rua Florencio de Abreu no Bairro de São Lourenço. Cada um trabalhava longe do outro. Não saiam juntos e nem juntos chegavam. Ninguém nunca soube dizer se conheceram a mãe ou o pai deles. Parecia que moravam ali a muitos e muitos anos e ninguém soube dizer se nasceram ali ou não. Quando Dona Joventina sentiu um cheiro esquisito viu que ele era produzido dentro da residência deles. Entrar? Nunca. Ninguém tinha esta coragem. A polícia foi chamada e a porta arrombada. Os policiais saíram rápido. O cheiro e o que viram os espantaram na hora. Um rabecão foi chamado e alguns policiais da perícia com vestimenta apropriada entraram e ficaram horas lá dentro. Do lado de fora centenas de moradores querendo saber o que tinha acontecido e a policia nada dizia. Depois que a policia técnica fez seu trabalho o rabecão levou os dois, ou melhor, o que sobrou deles. Mas morreram de que? A casa teve de ser arrombada, pois, tudo estava trancado. Nisto eles eram meticulosos. Em nenhuma janela havia menos que três ou quatro trancas.

                           As explicações correram de boca em boca na vizinha. Os jornais falados e escritos contaram horrores: Ambos foram encontrados dom a cabeça decepada, o membro cortado à faca, as línguas retiradas à força um horror que só para quem tinha estomago ver. Quem os matou? Por quê? Ninguém nunca viu visitas, namoradas nada. A história seria arquivada e nunca contada até que um dia Pietro criado coragem entrou na casa cuja porta estava entreaberta, olhando tudo descobriu um livro, ou melhor, um diário que surpreendeu muita gente. O Escritor V. A. Soares resolveu escrever a história que foi contada. Dizia para si mesmo que não mudaria nada. Depois que publicou o Livro a Tragédia de São Lourenço muitos duvidaram que ele não mexeu aqui e ali na história. Acredito que muito de vocês não leram o livro então me permito a contar algumas partes, pois tudo aqui não dá. É grande demais.

14 de março                         
                  - Meu nome  é Alfonso, eu e meu irmão nunca conversamos. Ninguém pergunta para o outro o que fez como fez e o que vai fazer no outro dia. Por um destino que desconhecemos temos a mesma aparência. Sem perceber usamos as mesmas roupas, cortamos os cabelos iguais e no mesmo dia. Eu trabalho no Hotel Flor da Mata e ele no Hotel São Joaquim. Não conhecemos nossos pais, só lembramos que morávamos no Orfanato Santa Genoveva. Dizem que não éramos felizes, pois nunca nos viram sorrir. Até hoje não sei o que é isto. Foi na noite de natal que fugimos dali. Sabíamos da estrada de ferro e ficamos de tocaia esperando. Nenhum de nós reclamou de fome ou de qualquer outra coisa. Já escurecendo vimos uma locomotiva subindo a encosta. Passou por nós bem devagar. Foi fácil entrar em um vagão de carga; Dormimos e acordamos com o trem parado em uma cidade. Não era pequena. Pois havia muitos prédios. Resolvemos descer. Cada um pegou uma rua e por mais de uma semana ninguém mais viu o outro. 

                      Já na rua principal alguém me chamou. Olhei e vi uma senhora que deduzi ser nissei. Ofereceu-me um trabalho e aceitei. Ela me deixou dormir em sua quitanda e nem pensei porque ela confiava em mim. Uma semana depois sai à noitinha e encontrei Mariel parado em frente a uma lanchonete. Entramos e fizemos um lanche. Cada um pagou sua parte. Ele estava com um jornal e leu a pagina de alugueis de casa. Achamos uma e o proprietário nos olhou, não falou nada e nos alugou sem cobrar um adiantamento. Era sempre assim, nunca pedíamos, nunca falávamos e todos sempre a ajudar. Eu já estava com doze anos. Cinco anos depois fiz um curto técnico de hotelaria. Consegui um emprego fácil. Daí para comprar um terreno e fazer nossa casa foi um pulo. Os anos passaram, eu não sabia se era ou não feliz. Tudo que fazia parecia que éramos um só, com o mesmo pensamento e a mesma maneira e agir.
                
                          Quando fizemos 23 anos resolvemos fazer uma comemoração. Simples, na Padaria do Zózimo. Sentamo-nos à mesa e pedimos tudo que gostaríamos de comer. Assustamos com uma jovem que parada em nossa frente nos olhava como se nunca tivesse feito uma refeição em sua vida. Ambos puxamos uma cadeira para ela. Posso pedir? Ela disse. Balançamos a cabeça concordando. Ele parecia que nunca havia comido nada. Repetiu diversas vezes e sem sorrir piscou um olho para mim e Mariel. Pagamos e fomos embora. Ao chegar a casa vimos que ela nos seguiu. Não falamos nada e ela entrou. Não disse nada. Não tinha mala mochila nada. Ficou conosco por muito tempo. Dormia na sala na poltrona simples que tínhamos comprado. Eu dormia em um quarto e Mariel em outro. Tudo aconteceu normalmente, ela dormia comigo um dia e no outro com Mariel. Foi com ela que deixei de ser virgem.

 15 de março.

                        Meu nome é Mariel, boa parte de nossa história Alfonso já contou. Esqueceu-se de falar em Marília. Eu nunca soube o que é amor. Ele também. Sem perceber amávamos Marilia. Ela era a esposa de nós dois. Não sei se ela gostava do sexo que fazia conosco uma noite comigo e outra com Alfonso. Sabia que Alfonso era igual a mim. Só um papai e mamãe, sem muitas delongas e logo terminávamos. Ela se levantava ia se lavar e ia dormir. O sexo só à noite. Como eu e Alfonso ela não dizia nada. Não ria, não chorava e nunca nos contou sua história. Pelo menos falava monossílabos. Boa noite e bom dia. Sabíamos que ao levantar o café estava pronto, sempre pães e bolos na mesa. Mesa onde não se ouvia conversa, causos nada. Cada um saia para seu trabalho na mesma hora e parecia combinado chegar também na mesma hora. Fizemos questão de dois banheiros. O banho era no mesmo horário. Cada um cada mês tirava da carteira quinhentos reais e dava para ela. O que deixamos em cima da mesa era para as despesas da casa.

                         Um dia quando chegamos não vimos mais Marilia. Ela havia partido. Ninguém perguntou para o outro o porquê. Várias semanas eu senti uma falta grande dela e sabia que Alfonso também mesmo sem falar um com o outro. Não houve reclamações, culpas, nada. Aceitamos como sempre aceitamos tudo que aconteceu em nossas vidas. Passou-se um ano. Nunca mais fizemos sexo com ninguém. Eu dizia para mim que só se um dia Marilia voltasse. Sabia que ele também. Ao completar três anos que Marilia foi embora eu ele em uma noite jantando em uma lanchonete proximo a nossa casa vimos ela parada em nossa mesa, de pé, com os mesmos olhos do passado. Com a cabeça pedimos para sentar. Comeu três vezes. Estava faminta como na primeira vez. Levantou, agradeceu baixinho e partiu. Não foi como a primeira vez que nos seguiu até em casa.

                          Foram mais dois anos e na mesma lanchonete ela apareceu novamente. Desta vez não veio a nossa mesa. Estava com outro homem. Sorria escandalosamente. Por várias vezes nos olhava e cochichava para ele dizendo alguma coisa. Ele dava grandes gargalhadas olhando para nós. Saímos e ficamos parados na esquina. Meia hora depois eles saíram. O seguimos o que pareciam se dirigir a sua casa. Quando eles entraram esperamos duas horas e forçamos uma janela e entramos. Os dois estavam dormindo em um quarto de casal. Eu segurei a mão dele enquanto Alfonso o enforcava com as mãos. Ela nos olhava com um terror enorme não acreditamos no que estávamos fazendo. Quando vimos que ele morreu, saímos da casa e fomos embora. Ela não nos seguiu. Não nos denunciou na policia. Nunca comentou com ninguém o que fizemos.

16 de março.  

                        Descobri este diário que não conhecia quando eles foram trabalhar. Li o que eles escreveram e resolvi escrever também. Precisava. Alguém devia saber o que aconteceu. Vocês sabem que eu sou a Marilia. Nasci de uma família humilde que me deixou dentro de uma caixa de papelão na porta da igreja quando tinha dois meses. Sei que quando entendi onde estava já tinha oito anos. Morava com um casal de velhos. Bem velhos. Dona Maria me dava duas surras por dia. Ela dizia – A primeira é para corrigir você, a segunda é para não esquecer. Eu sabia que não tinha feito nada. A velha queria se vingar de alguma coisa. Fugi de casa. Encontrei um homem bom e me deu guarida, dinheiro e sexo. Foi com ele que aprendi o que sei hoje. Um dia ele morreu e não me deixou nada, era casado e tinha filhos. Perambulei pelas ruas a cata de dinheiro e comida. Não era uma prostituta, não tinha jeito para isto. Se alguém quisesse pagar íamos em um beco ou no mato, seja lá onde for e fazia o que ele queria.

                       Um dia a patrulha nos pegou no fraga na porta de uma casa. Eu estava sem calcinha e ajoelhada. Ele correu e os guardas deram uns tiros que não acertou ninguém. Levaram-me com eles para uma casa vazia. Bateram-me tanto que desmaiei. Quando acordei estava jogada em uma cadeia imunda com outras mulheres da vida. Fiquei ali por cinco meses. Nem sabia minha culpa. Um dia me soltaram e fiquei marcada com muitos policiais. Sempre me comiam de graça sem pagar e ai de mim se reclamasse. Quando aquele dia entrei na lanchonete e vi Alfonso e Mariel pedi ajuda. Estava com fome. Eles me trataram bem. Nunca me maltrataram e nem sei porque fiz aquilo. Mas a vida não foi boa comigo. Encontrei um rapaz simples, pobre e que gostou de mim. Larguei os dois e fui morar com ele. Um dia eles entraram em nossa casa e o mataram. Jurei vingança. Voltei para a casa deles. Nem me disseram boa tarde e nem boa noite quando chegaram. Para eles eu devia estar ali sempre para servi-los. Sabia que minha hora chegou.

                        Consegui na quitanda do seu Ramon um frasco de um pozinho que ele me garantiu quem cheirasse ou tomasse água e ou outra coisa com ele misturado iria dormir um sono pesado por muito tempo. Não iria morrer, mas nem saberia de nada enquanto dormia. Justo o que eu queria. A noite preparou um suco para eles e coloquei o pozinho. Eles foram dormir logo e nem banho tomaram. Dormiram como uma pedra. Fui até lá com um facão, corte a cabeça de cada um, o saco e o membro. Cortei uma perna e um braço. Sorria quando fazia isto. Vingança é assim? Sei não meu ódio era demais. Eu poderia ter casado com Henrique, quem sabe hoje teria filhos e poderia ser feliz. Eles não deixaram. Nunca tive instintos assassinos e nem sei por que corte eles daquele jeito. Sai dali depois de revistar tudo que tinham. Descobri uma caixa de papelão escondida entre as roupas deles. Muito dinheiro. Era o que queria. Sumi neste mundo de Deus. Ninguém nunca mais ouviu falar de mim.

     
“Não me arrependo de nada que tenha alcançado as coxas
não nego coisa alguma que passe perto do coração
se fiquei roxa foi porque teve ação”. Martha Medeiros.

A vida é uma tragédia.
Sua história é uma epopeia.
Suas frases são versos.
Suas ações são uma peça.
Deixe-me ser sua simetria.
Faça-me bela como a nona sinfonia.
Torne-me o motivo da guerra de Tróia.
Lapide e crie a mais bela joia.
Contudo, o fim é cruel.
Não vou negar o que sinto por você,
E beberei cicuta.
Chamar-te-ei Tétis, e será minha ninfa,
E estarei preso nas tormentas.
Ficarei na incerteza de sua traição,
E serei mais um casmurro.
O Destino, autor da minha literatura
É inteligente e irônico,
Ele tornou-me um clássico,
Minha vida em folhetins que são escritos todos os dias.

terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

A canção de Bernadete


A FLOR E A FONTE

"Deixa-me, fonte!" Dizia
A flor, tonta de terror.
E a fonte, sonora e fria
Cantava, levando a flor.

"Deixa-me, deixa-me, fonte!”
Dizia a flor a chorar:
 “Eu fui nascida no monte...
“ Não me leves para o mar”.

E a fonte, rápida e fria,
Com um sussurro zombador,
Por sobre a areia corria,
Corria levando a flor.

"Ai, balanços do meu galho,
“ Balanços do berço meu;
 “Ai, claras gotas de orvalho
“ Caídas do azul do céu!..."

Chorava a flor, e gemia,
Branca, branca de terror.
E a fonte, sonora e fria,
Rolava, levando a flor.

"Adeus, sombra das ramadas,
“ Cantigas do rouxinol;
 “Ai, festa das madrugadas,
“ Doçuras do pôr-do-sol;

"Carícias das brisas leves
“ Que abrem rasgões de luar...
 “Fonte, fonte, não me leves,
“ Não me leves para o mar!"
*
As correntezas da vida
E os restos do meu amor
Resvalam numa descida
Como a da fonte e da flor..
Vicente de Carvalho

A canção de Bernadete

           O sol estava vermelho junto às nuvens escuras que chegavam de mansinho naquela tarde fria de final de inverno. Bernadete se dirigia para sua casa depois de fazer sua peregrinação de casa em casa pedindo ajuda para sua mãe. Não tinham o que comer. Seu pai morreu de tuberculose e sua mãe ia pelo mesmo caminho. Mas Bernadete não sabia disto. Apenas oito anos e ninguém para explicar a ela que sua mãe partiria em breve. Não fora um dia ruim. Ganhou um pouco de arroz, um pouco de macarrão. Não era nada, mas daria para uns dois dias as duas se alimentarem. Bernadete não estudava. A escola não aceitou com medo que ela passasse a doença para as outras alunas.

           Não tinham luz elétrica e água encanada. Ela tirava a água necessária na cisterna no fundo do quintal. Bernadete cantava. Estava feliz. Dois dias sem ter o que comer. Sua mãe lhe ensinou a cantar nas horas difíceis. Cantava e sonhava com a música que aprendeu com ela. Luar do Sertão. Sozinha pela rua quase deserta ela cantava. “Não há, oh gente, não luar Como esse do sertão. Oh que saudade do luar da aminha terra, lá na serra branquejando, folhas secas pelo chão...”. Bernadete amava cantar esta canção. Ao entrar em casa saudou a mãe carinhosamente. Pela primeira vez não teve resposta. Foi até ao quartinho e sua mãe inerte. Não falava. Ela balançou chamando Mamãe! Mamãe! Era o fim. Ela sabia. Sua mãe se fora. Ela a tinha prevenido.

           No dia seguinte enterraram sua mãe no cemitério da Saudade no centro da cidade. Uma senhora da prefeitura se encarregou de tudo. Os olhos de Bernadete estavam vermelhos de tanto ela chorar. Agora não chorava mais. Esqueceu-se de pensar para onde ia, qual seria seu destino. Não conhecia ninguém. Nem sabia se tinha algum parente. Sua mãe nunca disse nada. Cantou baixinho quando sua mãe desceu a sepultura para sua última morada. “Este luar cá da cidade tão escuro, não tem aquela saudade do luar do meu sertão!”. A mulher da prefeitura disse para ela arrumar suas coisas. Ela ia morar com Dona Heloisa mulher do Seu Nivaldo o tabelião. Bernadete não disse nada. Não conhecia ninguém. Quem sabe seria feliz lá?

            Dona Heloisa a olhou de uma maneira que a fez tremer e baixar a cabeça. Disse – Menina, eu não gosto de preguiça. Não gosto de gente respondona. Não gosto de gente suja. Portanto faça o que eu mandar e vamos viver bem as duas. Curto seco e grosso. Nada mais. Nem uma palavra de carinho. Perdera sua mãe e agora perdera também alguém que a pudesse acariciar e dizer palavras como sua mãe dizia – Eu gosto de você, eu amo você. Bernadete recebeu as tarefas do dia. Varrer e passar pano molhado em toda a casa. Limpar todos os dias o quintal das folhas das arvores. Arrumar as camas, lavar as roupas dos meninos. Esqueci-me de dizer, Dona Heloisa era mãe de Larita e Lourenço. Não reclamou. Ambos eram quase da mesma idade dela com exceção de Lourenço. Dois anos mais velho. Quem sabe seriam amigos?

           Queria ser amiga deles, mas Dona Heloisa não deixou. – Você é empregada eles são os patrões. Fique no seu lugar. Bernadete quase ficou triste, mas lembrou de sua mãe e cantou: - “Não há oh gente, oh não luar...” isto a fazia lembrar-se da sua mãe e assim ela sorria. Seu Nivaldo nunca a cumprimentou. Nem olhava para ela. Era normal. Ela aceitava. Dona Heloisa não quis colocá-la na escola. Não disse o porquê. Bernadete ficava quando tinha folga escrevendo seu nome. Achou um livrinho de beabá jogado no lixo. Em pouco tempo aprendeu a ler sozinha. Ela era muito inteligente.

           O tempo passou. Os anos passaram. Os filhos de Dona Heloisa foram estudar em um colégio interno na capital. Bernadete torcia contando os dias e as horas quando eles de férias voltavam para casa. Ela se sentia feliz com eles ali. De vez em quando Larita falava com ela, mas Lourenço nunca. Estava ficando um belo rapaz. Com seus dezesseis anos já era bem alto, seus cabelos loiros caiam na testa e era um charme vê-lo balançar cabeça para tirá-los dos olhos. As moças da cidade morriam de amores por ele. Bernadete estava com quatorze anos. Nunca foi bonita. Tinha uma perna mais curta que a outra e andava mancando. Seu rosto não era feio apesar de ter os cabelos crespos e por isto ela mesma o cortava para não ficar grande demais. Tinha um lindo sorriso e isto encantava quem não a conhecia.  Dona Heloisa a presenteava uma vez ou outra com as roupas de Larita que não serviam mais nela. Bernadete se deliciava. Sorria e cantava: “E a gente pega na viola que ponteia, e a canção é a lua cheia a nos nascer do coração!”. Não conseguia fazer amigos. Não podia sair. Quando saia era para ir à padaria ou ao armazém.

            Bernadete nunca esqueceu o semblante de sua mãe. Dormia em um quartinho no fundo do quintal que ela arrumou ao seu modo. Gostava quando estava lá, pois fez amizade com um canário Belga amarelo que vinha sempre cantar para ela na janela. Não tinha cortinas. Não podia ter. Mas tinha uns vasinhos com flores silvestres que ela regava diariamente. Agora não era mais só o canário amarelo. Um sabiá e um Pássaro Preto se juntou aos outros. Eles sempre pela manhã acordavam Bernadete com seu cantar na janela e ela contente corria para saudá-los.

             Bernadete levantava cedo. Muito. Tinha de fazer o café, ir à padaria, e voltar à velha rotina da casa. De uns tempos para cá Dona Heloisa a deixava passear até a praça aos domingos à tarde. Gostava muito. Via gente, meninos brincando e ela sorria para eles com sua alegria infantil, pois a pureza de Bernadete persistiu por todos os anos da sua vida. Ela olhava as meninas a brincarem no pula-pula, no balanço e a descer e subir o escorregador. Quando todos sorriam ela cantava. Nunca deixou de cantar a canção que sua mãe ensinou para ela. “Não há, oh gente...”.

             Bernadete quando fez vinte anos ainda continuava a mesma. Sempre alegre, sempre fazendo tudo naquela casa. Agora cozinhava também, pois Dona Heloisa teve um problema nas pernas e não podia andar. Ficava em uma cadeira de rodas azucrinando o dia inteiro sua vida. Bernadete ficou mais encorpada. Seus seios cresceram. Suas pernas apesar de uma mais curta ficaram mais grossas. Seu cabelo ainda crespos cortados curtos lhe davam um aspecto faceiro e até sensual. Mas ela não sabia o que era isto. Um dia ao varrer o corredor ouviu gritos e correu para ajudar. Mas era no quarto de Dona Heloisa. Ela gemia e pedia mais. Bernadete não entendeu nada. O que seria? Um dia ao sair da igreja Sentou em um banquinho onde varias meninas conversavam. Falaram de sexo, de penetração, mas penetrar o que? Nunca tinha visto um membro de um homem. Ouvia falar, mas não sabia como era. Não era um assunto que ela queria pensar. Todas as noites ajoelhava próximo a sua cama e agradecia a Jesus por tudo que estavam dando a ela. Não passava fome, tinha um quartinho só dela e tinha os passarinhos que eram seus amigos. Ela quando deitava sentia os lábios de sua mãe a lhe beijar. Ela vinha todas as noites. Bernadete sabia. Dormia sorrindo!

              Um dia Lourenço chegou da cidade grande com uma moça linda. Faceira. Loira também e os cabelos compridos iam até sua cintura. – Meus pais, esta é Edna, minha esposa. Sua mãe levou um susto e seu pai quase caiu da cadeira. Bernadete sorriu para ela como a dizer – Seja bem vinda moça linda! Edna perguntou quem era Bernadete – Lourenço respondeu que não era ninguém. Uma empregada mal agradecida, pois deram tudo para ela e fazia tudo errado! Bernadete abaixou a cabeça e sem perceber começou a cantar baixinho – “A lua nasce por detrás das verdes matas...” – O que é isto Edna perguntou. Nada, ela é louca. Cuidado com ela.

               Um ano depois Lourenço deixava Edna sozinha em casa e ia para a Rua do Quebra Cachaça. Bernadete não sabia o que era isto, mas achou que não era boa coisa. Voltava tarde, bêbado e chingando todo mundo. Um dia chegou calado e foi até o quarto de Bernadete. Entrou e deitou com ela em sua caminha estreita. Bernadete assustou e ia gritar quando ele disse – Se gritar vou contar a todo mundo que você me chamou. E vão escorraçá-la daqui para fora. Rasgou sua camisola. Ela sentiu a dor da penetração. Foi forte. Ele logo parou, pois a molhou toda por dentro. Bernadete chorava baixinho. De dor e de vergonha. Lourenço arrumou as calças e foi embora. Por vários dias nem olhava para ela.

               Edna suspeitava que Lourenço tivesse feito “mal” a Bernadete. A maneira como ele procedia em casa junto a ela não dava para esconder. Notou que Bernadete quase não ria mais. Andava sempre triste, de cabeça baixa. Não demorou e a barriga de Bernadete começou a crescer. Dona Heloisa não perdoou. Queria a todo custo mandar ela embora. Uma “puta” isto sim dizia. Faltou com o respeito! Meu filho casado e ela nem pensou nisto? E minha filha o que vai dizer? Bernadete sempre ficava de cabeça baixa. Os olhos cheios de lágrimas, mas ela cantava sem ninguém ouvir – “E a gente pega na viola que ponteia...”.  Seu Nivaldo não deixou. E você nesta cadeira de rodas vai fazer tudo?

              Quando o filho de Bernadete nasceu, foi em outubro. À noite. Ninguém ajudou. Edna ouviu os gritos e correu a ajudar. O menino já havia nascido. Quando pegou o menino sentiu que era lindo! Não falou nada com ninguém. O levou para seu quarto e disse a Lourenço que ele seria filho dela, pois ele era o pai. Um susto. Lourenço não falou nada. Bernadete no outro dia tentou levantar. Lavou-se. Os pássaros cantavam para ela na janela apesar de sua dor e tristeza. Sentiu que toda a noite sua mãe estava lá. Sorrindo para ela e dizendo – Calma minha filha, sua recompensa não tarda. Bernadete com dificuldade voltou ao trabalho. Edna a chamou em um canto e disse que ia tomar conta do filho dela, bastava ela amamentar. Daria tudo a ele. Não iria faltar nada. – Você nunca teria condições de cria-lo! Bernadete chorou. Chorou muito, mas mesmo assim conseguiu cantar – “Este luar cá da cidade tão escuro, não tem aquela saudade do luar do meu sertão!”.

              Passaram-se os anos. Antônio Carlos cresceu. Bernadete o olhava com amor e carinho e sorria. Ele não gostava dela, sempre lhe virava as costas. Seu filho não sabia que ela era sua mãe. Nunca o beijou, nunca o abraçou. Viveu junto a ele até quando fez sessenta anos. Ele rapagão, bonito, forte, se formou engenheiro. Vinha em casa, trazia presentes para todo mundo. Para Bernadete não. Ela o olhava orgulhosa, seus olhos brilhavam. Lágrimas se faziam cair. Ela fazia tudo que ele pedia. Mas ele nem sequer lhe sorria. Mesmo assim ela cantava de alegria – “A canção e a lua cheia a nascer no coração!”.

             Um dia Bernadete começou a tossir, da tosse viu que sangrava. Tentou esconder. Dona Heloisa bem velha, mais de oitenta anos disse – Como sua mãe. Tuberculosa! Tire ela desta casa! Internem ela em um sanatório! Seu Nivaldo não deixou. Afinal Bernadete dedicou uma vida inteira a família, nunca teve nada, e agora por ela para fora? Dois meses depois, em uma manhã de sol brilhante, Bernadete ao acordar viu os passarinhos cantarem em sua janela, não era só os três, eram centenas. Foi uma surpresa. Ela nunca viu um dia tão bonito, ensolarado, lindas nuvens no horizonte. Parecia que estava em um enorme jardim e o perfume das flores era trazidos até sua janela por aragens refrescantes vinda do céu. A família veio correndo para ver o que era. Uma multidão de passarinhos a cantar próximo a janela de Bernadete. Entraram e a viram deitada inerte. Um fio de sangue escorria em sua boca. Estava morta.

              Bernadete os viu entrar tentou sorrir, ia pedir desculpas. Mas viu seu corpo na cama. Ia falar com eles, mas sua mãe chegou. Estava toda vestida de branco. Atrás uma luz brilhante com vários anjos a cantar e os passarinhos cantaram também. O que é isto perguntou Dona Heloisa, assombração? Saiu rápido em sua cadeira de rodas. Seu Nivaldo estava boquiaberto. Larita que estava visitando não suportou a forte luz que vinha da janela. Lourenço tremia e Edna sorria. Antônio Carlos não estava em casa. Tinha viajado para o “estrangeiro”.

              Os vizinhos acorreram à casa dos Nivaldos. Eram milhares de passarinhos. Nunca se viu tanto e todos voando em volta da casa de Dona Heloisa. Cantavam e faziam uma enorme algazarra. Bernadete ficou em dúvida. Ficar ali ou ir com sua mãe? Sentiu tristeza em deixar aquela família que apesar de tudo ela os amava. Sua mãe sorria e dizia, - vem minha filha, eles ficaram amparados apesar do que fizeram a você. Todos passamos por isto. Eles irão um dia também passar as dificuldades da vida. E Bernadete seguiu sua mãe. A luz forte e brilhante as acompanhou enquanto desapareciam no horizonte. A passarada foi atrás e nunca mais voltaram naquela casa.

             Bernadete ficou deslumbrada com a cidade onde foi morar. Era linda, toda colorida e cheia de flores. Não sabia que tinha tanta gente que a conhecia. Sempre diziam – Olá Bernadete. Seja bem vinda! Esperamos muito este dia. Que Jesus esteja com você! E todos sempre sorrindo. Eram centenas que iam visitá-la em sua casinha branca cheia de rosas perfumadas de todas as cores. Eles sorriam para ela, a abraçavam e beijavam carinhosamente. Ela sentiu ali que o amor era o elixir da vida que sustentava a cidade. Sentia que agora pertencia a uma família, uma família enorme, linda, a família de Jesus. Ele havia atendido seu pedido e as suas preces. Viu que sua tosse não existia mais. Viu que também se vestia de branco e adorava. E as tardes, ela e sua mãe sentavam na varanda e cantavam. Não se sabe como, uma viola invisível dedilhava a canção e os passarinhos seus amigos faziam um coro tão lindo que a transformavam na mais bela canção do mundo. Era Maravilhoso. Impossível descrever e tão incrível de ouvir que toda a cidade do além parava para escutar a Canção de Bernadete:

Não há, oh gente  
oh não, Luar  
Como esse do sertão.

Oh que saudade  
Do luar da minha terra  
Lá na serra branquejando  
folhas secas pelo chão

Este luar cá da cidade  
Tão escuro  
Não tem aquela saudade  
Do luar lá do sertão

Não há, oh gente...
Se a lua nasce  
Por detrás da verde mata  
Mais parece um sol de prata  
Prateando a solidão


E a gente pega  
Na viola que ponteia  
E a canção  
É a lua cheia  
A nos nascer do coração