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domingo, 9 de dezembro de 2012

Alberico Boa Morte, o coveiro apaixonado pela alma do outro mundo!



Fantasmas.
Os seres que povoam a minha mente,
Nas noites de tempestade e de insônia
São almas errantes que tristemente,
Vagam pela terra sem alegria.

Nos os quero em minha cama,
Não os quero em meu pensamento.
Mas voltam sempre atrás de uma chama
Em busca de uma alma em movimento.

Não os conheço estes seres flamantes,
Talvez noutros tempos com eles vivi
São do passado, d’uma vida distante,
Ou talvez como eles, eu já morri!
Doroni Hilgenberg

Alberico Boa Morte, o coveiro apaixonado pela alma do outro mundo!
                            “Quem atravessa a rua recua para a calçada para poder ouvir com mais atenção. A moça que recebia o troco na loja da esquina interrompe o “muito obrigado” para escutar. Rostos indiscretos aparecem em portas e janelas de casas e apartamentos a fim de captar bem as palavras. O motivo do silêncio e da curiosidade que para a cidade de cerca de 20 mil habitantes no Norte gaúcho é a morte. Há 47 anos, a torre da Igreja Matriz de Tapejara anuncia todos os falecimentos que acontecem no município, através de um sistema de alto-falantes, desenvolvido em 1964 e substituído 30 anos depois.

O som da oração de São Francisco seguido pelo nome do último falecido já se incorporou à rotina de quem vive em Tapejara, município distante 400 quilômetros de Porto Alegre. De acordo com o padre Hélio Corso Marsiglio, responsável pela igreja que faz os anúncios, a população não aceitaria que eles deixassem de existir. “Se a gente deixar de fazer, a comunidade se revolta e o padre vai apanhar”, comenta entre risos. Desde que começaram a ser anunciadas, mais de mil mortes já ecoaram pelo município.”.

História baseada nesta lenda de Tapejara, cidade do Rio Grande do Sul.

                 Dizem por aí que tudo que tem de acontecer acontece. Dizem também que quem já fez aqui vai voltar para pagar. Bem para mim não importa. Que fiquem por lá que voltem desde que não me incomodem tudo bem. Mas isto nada tem a ver com Alberico Boa Morte. Em Tapejara ele era conhecido de todos. Afinal quem não conhecia o Recanto da Solidão? O mais lindo cemitério do Rio Grande do Sul? Sempre foi considerado o mais bonito do estado. O prefeito soube de um concurso que houve na Polónia e a cidade de Kraków foi à vencedora. Ele mandou um Assistente seu lá para ver e tirar fotos. Lindo cemitério. Ele dizia sempre que queria ser enterrado em um deles. Assim começou a modificação. Mudaram tudo. O Recanto da Solidão tomou forma. O sonho do prefeito se tornou realidade. Agora os mortos poderiam dormir o sono dos justos, em um local florido, gramado e a noite luzes coloridas para dar a impressão de arco íris cortando o céu da cidade. O Senhor Alcaide dizia que morreria feliz. Iria passar para a eternidade no mais lindo cemitério do mundo!

                O que marcava o Recanto da Solidão eram os mausoléus. Os coronéis, donos das casas mais chiques, de pequenas fabricas sabiam gastar para fazer seu recanto na última morada. Alberico Boa Morte nascera ali e sabia que um dia iria morrer também. Herdou do seu pai a função de coveiro. Nunca aprendeu outra coisa. Na escola o chamavam de Alberico Cadáver. Ficou até a quarta série. Não fez amigos. Não tinha em nenhum lugar. Ele sabia, era um estigma que não tinha futuro. Vivia nas horas vagas andando daqui e dali por cima das sepulturas, molhando as flores, limpando mausoléus, jazidos, túmulos. Alberico gostava de sua vida. Quando seu pai morreu ele sabia de tudo e como fazer. Nunca precisou de ajudantes. Não tinha pressa para enterrar um defunto, ou melhor, um finado, como lhe ensinaram a tratar o corpo do coitado que seria comido por vermes e com o tempo nem os ossos se aproveitariam.

                 Alberico Boa Morte era Católico. Não era praticante. Ia à missa uma vez sim e outra não. Já com seus 25 anos, andava curvado, tinha um pequeno cavanhaque, olhos fundos com sobrancelhas espessas. Aprendeu com seu pai a usar uma bengala e um chapéu coco, preto, com uma jaqueta também preta. Alberico tinha um sonho. Conhecer uma moça, namorar e casar com ela para ter filhos e quem sabe um seguidor do seu ofício. Desde que o pai morrera vivia sozinho em sua casinha no fundo do Cemitério. Um sonho difícil. Nenhuma moça na cidade olhava para ele. Elas tinham medo de sua figura e morar em um cemitério mesmo que fosse o mais bonito do mundo não era o pedido de muitas. Um dia varias jovens fizeram uma aposta. Ganharia quem namorasse Alberico Boa Morte por uma semana. Nenhuma ganhou um tostão. Era só passear com ele em cima das sepulturas, das catacumbas negras e não tinha uma que não fazia xixi nas calças.

                  O tempo foi passando e os amigos de Alberico Boa Morte eram os mortos do Recando da Solidão. Muitos juravam que ele conversa com as almas do outro mundo. Alguns afirmaram que ele trazia recados dos que se foram para os vivos que ficaram. Alberico gostava de sentar em noite de lua cheia no Mausoléu da Família Cunha, cujo ancestral famoso foi o Coronel Flores da Cunha da Guarda Nacional. Ele sabia que Marilia, que não casou e morreu de tuberculose adorava conversar com ele. Ela não vinha todos os dias e quando ficava sozinho sempre tinha fantasmas amigos para prosear e tomar um gostoso chimarrão que ele sabia preparar. Comprou uma linda bomba de prata folheada a ouro, um aparador, uma atérmica sempre com água quente, e claro um copo de água morna. A Erva-Mate era escolhida a dedo. Tinha noites de mais de vinte fantasmas ficarem ali com ele cantando Boi Barroso, Chimarrita, e adoravam Negrinho do Pastoreio. Juvenal trazia sempre seu violão lá do céu e com sua voz de anjo cantava baixinho – “Negrinho do Pastoreio, acendo esta vela prá ti. E peço que me devolvas a querência que perdi. Negrinho do Pastoreio...”.

                  Foi numa noite triste, que não apareceu ninguém que Alberico Boa Morte conheceu Chimarrita. Uma jovem dos seus vinte e cinco anos, morena, olhos azuis, linda. Que beleza meu Deus! Disse para si Alberico. Ele lembrava que ela tinha sido sepultada há pouco tempo. Dizem que seu noivo a matara a facadas, pois tinha muito ciúmes. Alberico Boa Morte se apaixonou por Chimarrita. A cidade de Tapejara não entendeu aquela sexta feira treze, onde um clarão se fez no Cemitério Recando da Solidão e junto com músicas e gritos de alegria se fizeram ouvir por toda a noite. Ninguém teve coragem de ir lá. De longe uma turba olhava aquela festa dos mortos. O delegado mandou dois soldados de a Brigada Militar ir lá ver e informar a todos. Nem pensar disseram. O prefeito cutucou o juiz que cutucou o delegado, que cutucou o sargento que cutucou o padre e nada.

                 Não se sabe como, a torre da Igreja Matriz de Tapejara começou a anunciar em alto e bom som, que Alberico Boa Morte e Chimarrita Flores da Cunha haviam se casado com as graças do Senhor. O padre correu até o serviço de alto falantes da igreja e nada viu. A cidadezinha de 20.000 habitantes ficou estarrecida. Uma serie de acontecimentos tomou conta do Cemitério Recanto da Solidão. A noite sempre se ouvia o som de violão, e juravam de pé junto que a sanfona era tocada por Chico Sanfoneiro morto a centenas de anos. Um dia, a cidade inteira veio à rua para ver. Alberico Boa Morte levava de mãos dadas, um garotinho lindo, dos seus seis anos, e quem conheceu Chimarrita jurava que era seu filho. Parecidíssimo. Não houve como a diretora da escola Flores da Cunha não matricular o menino. Quatro anos depois eis Alberico Boa Morte de mãos dadas com uma linda menina. Mais uma para a Escola Flores da Cunha.

             Até hoje os habitantes de Tapejara ouvem canções, sabem das festas no Cemitério Recanto da Solidão e já haviam se acostumado. Estudantes de direito que vinham passar as férias com seus pais e que se arriscavam a entrar naquele campo santo, juravam que as festas tinham vinhos de boa qualidade e o melhor chimarrão do mundo. Contavam que Alberico Boa Morte e Chimarrita Flores da Cunha formavam o casal mais perfeito que tinham conhecido. Muitos destes estudantes fizeram grandes amigos entre os mortos do Recanto da Solidão. Eu soube de fonte fidedigna que um dia o Padre, o Bispo e mais cem soldados da força pública invadiram o cemitério, pois pensavam em exorcizar aquela farra noturna, pois agora a cidade de Tapejara era um paraíso de turistas que vinham de todo lugar.

                     Encontraram o Campo Santo vazio, sem ninguém, mas surpreendentemente viram na varanda da casa de Alberico Boa Morte ele e Chimarrita Flores da Cunha, com mais umas quinze almas gaúchas do outro mundo, ao som de uma gaita, de um violão celebravam sua raízes gaudérias e a beleza deste chão cantando e dançando a pleno pulmões. Eles mesmos os mortos sabiam que o mal se espanta cantando e dançando, pois só assim se espanta as tristezas. Sem esquecer que o chimarrão e o vinho gaúcho corria a solta entre todos. O Padre e o Bispo saíram correndo e nunca mais voltaram. Os cem valorosos soldados da força publica entraram na dança e beberam vinho até o amanhecer.                  

Chimarrita vou cantar
Qu'inda hoje não cantei (bis) 
Deus lhe dê muita boa noite
Qu'inda hoje não lhe dei (bis) 

Chimarrita morreu ontem,
ontem mesmo se enterrou (bis) 
Quem falar da chimarrita
Leva o fim que ela levou (bis) 

Chimarrita que eu canto
Veio de cima-da-serra (bis) 
A pular de galho em galho
até chegar na minha terra (bis)



Fantasmas

Vieram de longe estes fantasmas
Pagos pelo diabo
Para me torturar…

Fico presa
De pés e mãos mergulhada na dor
Há uma sombra branco-Etérea
Etérea, transparente
Postada em desafio
Entre mim e ti, ó meu Amor!


Deixa-a passar
Confio tanto na alva madrugada
Que vou sorrindo aos fantasmas que chegam

Pagos pelo diabo
Para me torturar…

Maria Helena Amaro

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

O Vale da Redenção. Onde o ódio e o amor convivem em paz.




A Vingança!
 
Afasta de ti a vingança
O ódio e o rancor
Aquela mata a esperança
Estes, a paz e o amor
 
A vingança é um reflexo
Do instinto predador 
De quem nutre um complexo
De querer ser superior
 
É a *escrófula da alma
É a máxima do desamor
No indivíduo sem calma
Que só alimenta o pior
 
Ruína inerme, sem valor
Chaga, tenebrosa e triste
Golpe sujo, de **ablator
Estertor que ao mal resiste
 
É o ódio em movimento
O rancor em turbilhão
À vingança, é o excremento
Do amor e da razão
 
Vingança é o acre da vida
A incompreensão moral
Na penúria desvalida
Em nosso reino animal
 
Qual seta na escuridão
É o ***rebramir selvagem
Da fúria do coração.
Armando A. C. Garcia. 


O Vale da Redenção.
Onde o ódio e o amor convivem em paz.

                    Vinte cinco anos! Quase uma vida. Já nem sabia mais o que era viver fora das quatro paredes do presidio da morte. Ali ele cresceu espiritualmente e seu corpo adquiriu a maturidade de um homem que sabe o que quer. A penitenciaria quando lá chegou acreditou que ia morar no inferno. O cheiro, as paredes descascadas, os gritos, os vícios degradantes e ele não sabia se poderia aguentar. Estava com vinte e cinco anos quando chegou. Começou a lembrar de seu passado. No inicio lembrava todos os dias. Depois raramente. Levava uma vida simples sem ostentação e trabalhando de sol a sol. Abelardo era seu amigo de infância. Juntos abriram uma empresa para fabricar sacolas de papel. Estava dando certo. Os negócios iam bem. Abelardo cuidava das vendas e Francine da fabrica. No inicio só ele e Abelardo. Depois mais um e mais um até que a fabrica chegou a possuir doze funcionários, e todos gostavam de Francine e Abelardo.

                     No domingo, ao sair para ir à missa dominical dois investigadores o prenderam. Acusaram-no de matar Abelardo. Foi encontrado morto na fabrica esfaqueado em diversas partes do corpo. Vários empregados confirmaram que só ele e Abelardo ficaram no escritório depois do encerramento do expediente no sábado. Um deles disse ter ouvido gritos e uma luta corporal. Conseguiu contratar um bom advogado. Mesmo mostrando que Francine estava sendo acusado injustamente perdeu a causa. Foi condenado a vinte e oito anos e se tivesse bom comportamento poderia sair com vinte e cinco anos. Francine ficou desesperado. Não estava acreditando seria um pesadelo? Seus pais moravam no interior e levaram um choque tremendo quando souberam da decisão do júri. Sua mãe foi internada as pressas.

                       Seu primeiro dia foi como se estivesse vivendo em um mundo desconhecido. A primeira noite na cela foi um horror. Não aguentou e começou a gritar que era inocente. Todos riam dele. Seu companheiro de cela o mandou calar e chorando sentou em seu catre e ali ficou até o dia seguinte sem dormir. Nos dias seguintes ele ficou como um sonambulo levado aqui e ali pelas normas rígidas da prisão. Sua barba cresceu. Não trocava de roupa. Um cheiro insuportável exalava de seu corpo. Obrigaram-no a tomar banho. A trocar de roupa. Como se estivesse demente deu um soco em outro detento que ria sempre do seu choro, do seu olhar de menininho atrás da mamãezinha. Ficou uma semana na solitária. Alí ele conheceu o seu inferno particular. Resolveu mudar.

                      Seu pai o visitou duas vezes. Depois desistiu. Ele não falava. Ficou mudo de repente. Quando soube que o Laureano o contador se apossou da fábrica e provou por documentos que era o novo dono Francine se desesperou novamente. Agora estava entendendo tudo. Mas não disse nada a ninguém. Sua dúvida de quem fora o assassino de Abelardo não existia mais. Que demorasse o tempo que fosse. Quando saísse dali sua vingança estava programada. Não perdia tempo. Malhava o dia inteiro. Seu corpo modificou. Ficou respeitado entre os detentos. Mas ele não brigava com ninguém. Teria que se mostrar ser de boa paz e boa índole. Só assim poderia sair mais cedo daquele inferno. Passou a trabalhar na fabrica de sapatos da penitenciária. Como não tinha vícios economizou tostão por tostão.

                      Um ano se passou. Dois, três, cinco e agora Francine era uma pessoa pacífica. Os guardas e até o Diretor tinham certa admiração por ele. Era um tipo de líder da paz. Sabia separar confusões entre os presos e mesmo não sendo um religioso, todos tinham por ele um grande respeito. Dez anos, quinze e quando fez vinte e três anos recebeu o alvará de soltura. Bom comportamento. O Diretor aprovou com louvor. No dia da sua saída fizeram uma festa para ele. Alguns homens feitos, assassinos, perigosos ladrões choraram de emoção com sua partida. Na porta que dava para a rua, Francine assustou. Uma nova vida. O que esperava ele encontrar nesta vida que para ele era desconhecida? Seu pai não estava ali. Nunca mais dera noticia. E sua mãe? Conseguira sobreviver do coma que teve durante o julgamento? Não sabia, olhou para trás viu o enorme prédio onde viveu dezoito anos da sua juventude. Pegou o ônibus para o centro da cidade.

                      Ele tinha uma casa no Bairro Santa Amélia onde morava antes de ir preso. Chegou lá e a encontrou arrumada e bem cuidada. Dona Sarita a vizinha estranhou em ver aquele homem enorme, que parecia mais um boxeador. Quando ele disse quem era ela não acreditou. Depois o abraçou e chorou em seu ombro. Entregou para ele a chave da casa. Ela tomou conta o tempo que ficou preso. Disse inclusive que pagou todos os impostos. Ele disse a ela que tudo que gastou seria devolvido. Tostão por tostão. Foi até sua casa, entrou, sentou em uma cadeira de palhinha, ficou ali horas e horas pensando. A tarde chegou. Saiu para um lanche e a curiosidade o levou até a fábrica. Não existia mais. Agora era um enorme prédio. Laureano tinha vendido e foi morar no interior. Em uma cidade chamada Vale da Redenção.

                     Francine sabia o que ia fazer. Não tinha pressa. A pressa é inimiga da perfeição. Lembrou que antes de ir preso tinha cento e vinte mil reais em uma poupança. Foi até o banco. Estava lá. Agora muito mais. Um milhão e duzentos mil. Retirou quarenta mil. Deixou o saldo lá. Comprou algumas roupas um bom par de tênis. Comprou também uma pequena mochila e um bornal. Deu a Dona Sarita cinco mil. Ela não queria aceitar. Trouxe a escritura da casa. Passou em nome dela. Ela chorou muito. O abraçou e ele partiu. Ela sabia que não o viria nunca mais. Francine não tinha pressa. Ele tinha todo o tempo do mundo. Perdeu dezoito anos em uma prisão. Seus planos era uma só. Vingar de seu desafeto. Daquele que matara seu amigo. Que o fizera chorar atrás de um presidio, e ainda lhe roubara tudo que tinha na vida.

                     Partiu rumo ao Vale da Redenção. Ficava no sul de Minas Gerais, quase divisa com o Espírito Santo. Poderia ter comprado um carro. Não quis. Iria a pé. Precisava disto. Respirar ar puro. Ouvir os ruídos da noite. Sentir o sol, a chuva, quem sabe ver os pássaros a lhe acompanharem os passos. Iria percorrer mil e duzentos quilômetros. Tudo bem. Correr para que? Ele precisava viver na natureza. Sentir-se vivo de novo. Sabia que ia matar Laureano. Imaginava vê-lo sofrer. Pagar por tudo que sofreu. Sabia que iria voltar de novo para aquele inferno, mas não se preocupava. Uma tarde de uma quinta botou o pé na estrada. Pouco dinheiro no bolso. No quinto dia tentaram assaltá-lo. Eram dois. Francine os botou para correr. Não seria fácil vencê-lo em uma luta. Um mês se passou viajando na estrada, dormindo ao ar livre, chuva torrencial, sol de rachar e lá ia Francine com um sorriso nos lábios.

                     Que saudades da lua cheia, brilhante que durante os quatro primeiros meses de jornada nunca deixou de aparecer para ele. Uma estrela que todos chamavam de Estrela Dalva o acompanhou nas madrugadas frias e nos nevoeiros que apareciam nos vales por onde passava. Não tinha fome. Parava sempre em um posto de gasolina para fazer as refeições. Muitas vezes pagou em casas a beira da estrada um prato feito. Tomava banho nas cascatas, nos lagos e rios por onde passou. Ele mesmo lavava sua roupa e a esticava em uma árvore qualquer para secar. Se existisse felicidade Francine era feliz. Para dizer a verdade, muitas vezes esqueceu sua vingança. O ódio no coração estava desaparecendo. Ele agora adorava o cantar das cotovias, das águias que o perseguia no céu, do grito lascivo da onça parda que lhe acompanhava os passos, mas nunca o atacou.

                   Em um sábado de sol, pela manhã avistou a placa da cidade. Bem vindo ao Vale da Redenção. Sentou ali próximo a uma árvore frondosa e pensou em tudo que aconteceu com ele durante toda sua vida. Levantou e se pôs a marchar de uma maneira firme, agora não iria parar. As primeiras casas apareceram. Depois uma rua calçada de paralepípedos e finalmente chegou a uma praça no centro da cidade. Linda a praça. Muitos ali iam descansar debaixo das figueiras centenárias. Viu as crianças brincando de esconde, esconde algumas meninas bem vestidas a olharem os meninos que saiam da escola. Velhos jogavam dama e casais passeavam com seus filhos de colo. Perguntou a um idoso se conhecia alguém de nome Laureano. – O prefeito? – Prefeito? Ele assustou. Sabe onde mora? Aquela casa lá na esquina onde tem uma grande mangueira. É a melhor da cidade. Mas olhe, ele sofreu um derrame. O vice-prefeito assumiu.

                     Ele foi até lá. Bateu na porta. Uma moça atendeu. Que moça linda! Cabelos negros compridos, olhos castanhos que se destacavam, um pequeno sorriso nos lábios como a dizer que ele era bem vindo. Seu corpo estonteante. Vestia simplesmente. – Pois não? Gostaria de falar com o Senhor Laureano. Ela franziu a testa. Quem é o Senhor? Um amigo que o conheceu na capital.  Educadamente mandou Francine entrar. – Olhe moço, meu pai está paralítico. Não fala, mas entende bem os que lhe dirigem a palavra. Se o Senhor for um amigo ele ficará muito feliz! Francine não sabia o que dizer ou fazer. Fora ali para matá-lo. Queria pegar no seu pescoço e torcer para isto treinou muito na prisão. Não importava que o matassem depois. Mas agora não sabia o que fazer. Aquela jovem olhando, sorrindo, acreditando que ele poderia ser uma salvação para seu pai entrevado em uma cama era demais para ele. E o pior, uma menininha linda e sorridente lhe disse oi! – Minha filha ela disse.

                    Não disse nada, se dirigiu até a porta. Nem disse adeus. Saiu dali caminhando sem destino. Sua cabeça, sua mente não sabia raciocinar. Precisava de mais algumas noites a dormir sob as estrelas para chegar a uma conclusão. Sua vingança estava por um fio. Sua vida de caminheiro voltou a lhe atormentar a mente para não parar. Vinte e três anos de cadeia e agora estava livre. A vida que tinha escolhido era tudo que desejava. Pegou a estrada e viu ao longe o prenuncio de uma chuva. Um arco íris colorido ficou seus pés entre duas montanhas. Um pássaro preto cantou por perto e ele achou que era o pássaro que o acompanhou em toda sua jornada. Não ouviu vozes nem sinais. Ele sabia que não era um escolhido.  Ninguém lhe disse nada, mas sua vingança não existia mais. Agora ia fazer o que estava fazendo. Andar, andar, nunca parar em lugar nenhum. Ver o sol a chuva, a lua novamente, ver a estrela Dalva a brilhar para ele no céu.

                  Muitos caminhoneiros comentavam entre sí do andarilho que não parava. Era visto muitas vezes no Norte, muitas vezes no Sul. No Centro Oeste contavam que ele era santo, no Este diziam que ele fizera milagres. Acho que criaram uma lenda. No Vale da Redenção não ouve ódio. O amor mostrou sua força em todo seu esplendor. Francine morreu muitos e muitos anos depois. Dizem que morreu sorrindo. Dizem que a lua não saiu do lugar por muitos dias. Dizem que uma cotovia velou seu sono e o acompanhou em sua subida aos céus. Lendas, como são belas as lendas. No Vale da Redenção ela surgiu. E ficou conhecida por todos os caminheiros daquelas estradas sem fim! 

Meu Destino
 
Vim cumprir o meu destino
Transpor pavores sem igual
Ser humilde peregrino
Passar privação abissal
 
E, no infinito desacerto
Viajou minha hesitação
Tu, nunca estavas por perto
Só, longe do meu coração!
 
Vivi d’ávidas esperanças
Sempre suspenso no ar
Estava em ti a confiança
Tu, estavas em outro lugar
 
Assim, ao ver-me traído
Do deslumbrante projeto
Vi meu sonho destruído
E, senti-me um abjeto!
 
Se o destino é nosso fado
Ele nos dispõe, onde estamos
Nem sempre do nosso agrado
Ele nos coloca, e ficamos
 
O que passa, não volta mais
Pelo destino é previsto
São razões elementares
Como o calvário a Cristo!
 Armando A. C. Garcia 


terça-feira, 23 de outubro de 2012

O céu por testemunha. O crime do Padre Lourenço.



Amor é fogo que arde sem se ver;
É ferida que dói e não se sente;
É um contentamento descontente;
É dor que desatina sem doer.

É um não querer mais que bem querer;
É um andar solitário entre a gente;
É nunca contentar-se de contente;
É um cuidar que se ganha em se perder.

É querer estar preso por vontade
É servir a quem vence o vencedor,
É ter com quem nos mata lealdade.

Mas como causar pode seu favor
Nos corações humana amizade;
Se tão contrário a si é o mesmo amor?


O céu por testemunha.
O crime do Padre Lourenço.

               Faz tempo. Muito. Quem me contou esta história acho que não está mais entre nós. Quando o conheci tinha mais de oitenta anos. Bebericava uma cerveja no bar do Toninho, sozinho e pensando na vida. Ele chegou e sentou sem pedir. - Mais um copo pediu! Era um "Velho" simpático. Cara lisa, cabelos brancos, magro feito um palito. Simpático. Não disse nada. – Mais um copo falei para o Toninho. Ficamos ali jogando conversa fora. Passava de nove da noite e ele entrou no assunto do Padre Lourenço. Contou-me toda a história. Triste. Muito. Podem até dizer que conhecem centenas de outras iguais. Concordo. Mas aquele "Velho" me contou de uma maneira tal que me emocionou. Olhe para dizer a verdade fui para a pensão onde estava há alguns meses e sentado na cama fiquei acordado por horas pensando. Não tinha tantos motivos para isto. Podem criticar. Paciência.

               O Padre Lourenço era de família pobre. Sempre teve vontade de ser padre. Seu sonho era servir a Deus Nosso Senhor. Quando fez três anos mal falava e dizia a sua mãe sua vocação. Ela ria. Não era incrédula nada disto, mas pouco frequentava a igreja. Rezava com ele todas as noites. Lourenço com quatro anos não perdia uma missa. Logo fez amizade com todos na igreja. O Padre Nonato, já velhinho tinha por ele um amor enorme. Com cinco anos ajudava na Missa e orações vespertinas. Cantava lindamente o Kyrie Eleison, todos gostavam de ouvi-lo cantar a Oração de São Francisco de Assis. Tornou-se na igreja um jovem que além de exemplo era um dos melhores alunos do grupo escolar que estudava.

                 Aos oito era conhecido por todos os católicos da cidade. Um menino de virtude que dava exemplo para todos os outros. As mães não cansavam de dizer aos seus filhos – Faça como o Lourenço, ele sim, é muito obediente e temente a Deus. Aos dez Lourenço foi para o seminário. Como seminarista estudava como nunca. Dominava Filosofia e Teologia como ninguém. Ajudava a todos os colegas, era bem quisto pelos padres dirigentes, e seu sonho de ser um sacerdote sobrepunha a todas as dificuldades que os outros sempre reclamavam com ele. Não era uma vida fácil. Sempre em oração pela manhã, missa diária, aulas e serviços comuns ele participava com alegria e prazer. As atividades pastorais era motivo de alegria para ele. Sua dimensão comunitária que correspondia à convivência, relações humano-afetivas e caridade eram motivo de orgulho por todos os seus amigos. Todos diziam que ele seriam um grande sacerdote. Quem sabe um futuro bispo?

               Sua ordenação aconteceu quando fez dezenove anos. Sua mãe estava presente e muitos parentes e amigos. A igreja do seminário estava totalmente cheia. A Santa Missa foi celebrada pelo Padre Nonato que fez questão de estar presente. Após o término Lourenço foi chamado a frente de todos e apresentado à assembleia que estava na primeira fileira da igreja. Foi questionado quanto a sua fé, seu trabalho, sua obra que iria realizar. Depois prometeu desempenhar com diligência suas funções ado sacerdócio, respeitando e obedecendo aos seus superiores religiosos. Prostrou-se diante do altar e enquanto rezaram iam cantando a Ladainha de Todos os Santos. Em silencio, foi oferecido à oração consecratória, e Lourenço foi investido com uma estola e uma casula. Crismado foi apresentado com o cálice sagrado e a patena. Uma cerimonia linda. Lourenço agora o Padre Lourenço não cabia em si de contente. Ia servir a Deus conforme era seu desejo.

              Apresentou-se uma semana depois a Vossa Excelência o Bispo Bonifácio. Beijou seu anel pastoral, fez uma genuflexão diante da cruz pastoral. O Bispo Bonifácio estava impressionado. Em todo seu prelado nunca tinha visto um padre como O Padre Lourenço. Achou que devia mandá-lo para uma paroquia em uma pequena cidade onde o padre atual estava nas últimas no hospital. Interessante. Era o oitavo padre que ficava doente e depois de dois ou três meses internado morria. Tinha de haver uma explicação. Contou tudo ao Padre Lourenço. Disse que ele devia descobrir o motivo desta mortandade. Padre Lourenço fechou os olhos e rezou. Pediu a Deus que lhe mostrasse o caminho. Despediu de sua Excelência e partiu para Santa Fé.

               Dois meses depois os jornais de todo o país estampavam em manchetes garrafais. Padre Lourenço da cidade de Santa Fé matou a pauladas uma menina de dezesseis anos. Lavy Antares uma jovem querida por toda a cidade foi vitima criminosa, sem explicação de um padre que todos diziam ser um grande seguidor de cristo. As autoridades episcopais não acreditavam no acontecido. Estavam estarrecidos. A mãe do Padre Lourenço foi internada as pressas quando soube e muitos parentes boquiabertos. Ninguém sabia explicar o motivo. Encontraram o padre sentado em uma cadeira, um porrete na mão cheio de sangue, a menina toda esfolada e parte do crânio aberto pelas porretadas. O padre não falou nada e até hoje ainda preso não explica o que fez. Ficou mudo.

              Um repórter foi até Santa Fé e todos eram unânimes que o padre era uma flor de pessoa. Um passado impecável. Amável, tratava a todos com carinho, a igreja depois de sua chegada ficava sempre cheia quando das missas, pois ele celebrava com uma maneira tão linda que cativava a todos. Um crescimento quantitativo de fieis aconteceu. Organizou as Filhas de Maria, deu força ao Grupo Escoteiro instalado em uma sala da paróquia, movimentou fieis para organizarem melhor o Catecismo que não tinha boa presença. Visitava diariamente fieis ou não que estivesse doente. Não tinha hora do dia ou da noite que era chamado e atendia sorrindo. Ninguém entendera bem o que aconteceu. Nenhum fiel nenhum morador tinha uma explicação.

             Lavy era católica praticante como sua mãe e seu pai. Não perdia uma missa. Ficava de olhos fixos nos santos que adornavam o altar e balançava a cabeça para frente e para trás como a entender a palavra do padre. Diziam que ela quando a missa terminava pegava uma vassoura e varria toda a igreja. Quase não saia de lá. Desde pequena que todos a consideravam uma devota e para alguns uma santa. O repórter ficou uma semana em Santa Fé. Não descobriu nada. Porque um padre, considerado modelo matou uma menina indefesa? O que houve? Possessão? Obsessão? Tomado pelo Demônio? Difícil saber. Santa Fé era uma cidade pacata, quase todos os habitantes católicos e só uma Igreja Presbiteriana mesmo assim tinha poucos fieis. O repórter desistiu. Um mês, dois e no quarto não havia mais manchetes, o publico perdeu o interesse.

             Naquela quinta chuvosa, sentado na sala paroquial o Bispo Bonifácio tentava pensar em outros temas em outros assuntos, mas não conseguia. O Crime do Padre Lourenço não saia de sua mente. Tentava uma explicação pelo acontecido. Não tinha. Lembrava a confissão do Padre Lourenço. Fora visitá-lo na prisão. Não sorriu uma única vez. Quase não falou a não ser quando confessava. Quem poderia imaginar? Seria verdade ou mentira do Padre Lourenço? E que adiantava agora? Lembrava palavra por palavra o que ele disse. Nunca ninguém saberia, pois o que ouviu era segredo de confessionário. Tinha que guardar para sí tudo o que ele disse. Sabia que ele nunca contaria para ninguém. Não iria ajudar a igreja em nada. Para dizer a verdade seria melhor que ele não tivesse dito nada. Pelo menos poderia dormir em paz o que agora não conseguia.

            - Excelência, começou Padre Lourenço. Perdoe-me se puderes. Pequei contra Deus e contra os homens. Aceito minha penitencia de morrer aqui nesta prisão. Sei que não tenho futuro e meu passado não existe mais. Todos me conhecem como o Padre assassino. Sou mesmo. Piedade? Não quero e não mereço. Sabe excelência, os outros padres que morreram quem sabe poderão compreender melhor. Claro também não irão me perdoar.  Mas olhe não quero o perdão deles. Não quero porque não mereço mesmo. Ninguém iria acreditar que ela era possuída. Nunca o demonstrou para ninguém. Se não tivesse feito o que fiz seria uma mortandade de padres naquela paroquia. Como? Simples Excelência. Lavy Antares tinha o rosto de um anjo. Quem a visse rezando nas missa e em orações poderia dizer que ela era uma santa, pois nem namorado tinha. Dizia para sua mãe que quando fizesse dezoito anos iria entrar em um convento.

           Sabe Excelência, quando ela me procurou tive uma enorme simpatia pela menina. Educada, prestativa, e olhe só fiquei sabendo que era surda e muda dois dias depois pelo sacristão Leôncio. Muda e surda? Risos. Não era não Excelência. Enganou a muita gente. Ninguém acreditaria no que ela fazia com os padres na paróquia. Eu fui surpreendido cinco dias depois que assumi a paróquia. Estava em meu quarto quando ela entrou. Levei um susto enorme. Levantei da cama e pedi para ela me esperar na sacristia. Excelência precisava de ver o rosto dela. Afogueado, totalmente alterada e sorrindo sorrateiramente. Aproximou-se de mim e segurou meu membro com força e me beijou. Deus meu! O que era isto? Sai correndo e ela rindo atrás. Agarrou-me pelo ombro e me deu uma dentada na nuca. Sangrou. Achei que ela estava louca. Olhei em seus olhos e foi então que vi o Demônio. Sim Excelência. O Demônio.

            Saí pela rua transtornado e olhei para trás e a vi de olhos baixos, indo para sua casa. Não sabia o que fazer. Não tinha a mínima ideia qual rumo devia tomar. Entrei novamente na igreja e rezei. Rezei muito, pedi a Deus que me ajudasse. Mostrasse-me o caminho que deveria seguir. A noite chegou. Rezei a missa das seis tremendo. Não sei se os fieis observaram alguma coisa. Dormir cheio de temor. Na missa da manhã lá estava ela. De olhos baixos rezando. Pedi a Deus por ela. Que a protegesse. A missa acabou e fui me trocar. Prometi a dona Joventina de visitar seu marido doente. Ela tinha insistido. Não deu. Ela a maldita entrou no meu quarto. Trancou a porta a chave. Tirou a roupa. Ficou nua em minha frente. Rangeu os dentes e falou com voz roca. “Padre maldito, agora você vai-me foder!” Pulou em cima de mim. Uma força descomunal. Rasgou minha batina, rasgou minhas roupas íntimas. Jogou-me na cama e sentou em mim.

              Incrível Excelência. Não era ela, era o Demônio. Tremendo perguntei a ele o porquê de tudo aquilo. Ela ou ele, me forçando a entrar nela gritava e rosnava. Malditos padres, odeio voces todos! Nesta paróquia não vai ficar um vivo. Mordeu-me no pescoço. Senti uma dor imensa e logo o local passou a coçar. Ela ria. Um riso de gente morta. Ela fedia. Um mau cheiro incrível. Tentei tudo para me desvencilhar e não consegui. Meu membro não subia. Não tinha como. Ela forçava e ele saia. Desistiu e vestiu suas roupas. Abriu a porta e disse – Sua vez chegou. Vai morrer em breve maldito padre de merda! – Quem acreditaria que a menina estava sendo possuída pelo Demônio? Na presença dos outros era uma santa. Fui de novo a igreja e chorei. Pedi a todos os santos, pedi a Deus. Ajude-me!

                Sabe excelência, tinha resolvido procurá-lo. Não sabia se ia acreditar em mim. Mas a decisão estava tomada. Avisei ao Sacristão que ficaria dois dias fora. Fui fazer a mala. Ela entrou. Maldita! Logo ficou nua. Gemendo disse que se não a comesse gritaria que eu a estava violentando. Deu-me um tremendo murro na testa que cai de boca no chão. Foram vários chutes. Quebrou dois dentes da minha boca. Ela sangrava. Agarrou meu membro e apertou. Doeu muito. Gritei de dor. Ela ria. Soltou-me e disse – Deite, agora ou me fode ou eu te mato! Que me matasse Excelência preferia morrer. Mas uma voz me disse que eu tinha de acabar com aquilo. Outro viria mais outro e outro e nunca iria acabar. A menina possuída pelo Demônio seria sempre a virgem da cidade. Ninguém acreditaria em nenhuma historia que ela era possuída.

                Saltei da cama. Ao lado da janela tinha um mourão que usava como tranca. Bati na sua cabeça com força. Fiquei possesso. Bati mais e mais. Vi o sangue jorrando. Sentei na cama. Ela estrebuchava no chão. Gemia e dizia com voz rouca. Matou essa, mas volto em outro filho da puta! Você não perde por esperar. Morreu e não ouvi mais nada. O sacristão vendo o barulho em meu quarto veio correndo. Abriu a porta e me viu sentado na cadeira todo ensanguentado com o porrete, ou melhor, o mourão e a menina esticada no chão e morta. Saiu correndo e gritando que o padre matou a virgem. Muito vieram. Tentaram me linchar. Achei que deviam. Mas a policia chegou logo. Transferiram-me de cidade. Agora estou aqui neste presidio. Fui julgado e condenado há trinta anos. Quero cumprir todos os dias. Nunca vou pedir para sair antes.

              O Bispo Bonifácio levantou da cadeira que estava na Sala Paroquial. Não dava mais para pensar e raciocinar direito. Não julgava mais o Padre Lourenço. Deus sabe o que faz. Sabia que pelo menos uma vez ao ano iria visitar o Padre Lourenço. Um homem que como padre seria o maior exemplo que ele conheceu. Nada aconteceu e sua vida virou do lado avesso. Nunca mais repórteres o procuraram. Passaram-se alguns anos quando a policia invadiu o Presidio durante uma revolta, mataram mais de cem detentos. Soube que o Padre Lourenço foi um dos primeiros. Tentou segurar os policiais dizendo a eles que não fizessem nada. Iriam se entregar. Recebeu uma bala no estomago e outra na cabeça. Morreu na hora. Se foi para ao céu o Bispo não sabia. Rezou por ele. Rezou também pela alma de Lavy Antares. Uma menina que não teve culpa.

             O "Velho" que me contava a história parou de repente. Seus olhos ficaram virados. Me olhou dentro dos meus e disse: - O Padre Lourenço era meu filho. Minha mulher ficou louca. Morreu em um hospício. Não tenho mais família. Ando aqui e ali e procuro paz. Não encontro. Que Deus tenha piedade da minha alma! Levantou e foi saindo. Na porta do bar virou e completou: - e De Celma minha mulher e do meu filho Lourenço. Sumiu na rua escura. Nunca mais o vi.

Soneto de Fidelidade

De tudo ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento.

Quero vivê-lo em cada vão momento
E em seu louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento

E assim, quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama

Eu possa me dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure.

sábado, 22 de setembro de 2012

O expresso do Rio Selvagem.



Fluir de um rio.

Correm as águas do rio
Passam na agulheta do tempo
A mesma água não volta, nem pelo fio
Não repete a sua passagem, observo, lembro
A vida é como esse rio
Na superfície a velocidade instantânea
No fundo as correntes pesadas
As pedras roladas, as plantas prezadas
O que se esconde e funde no leito
Escorregadio que com os tempos feitos
Pouco mudam, pouco nadam
A vida de um rio, não é só a agua que passa
É as margens descoladas, divididas
São quem passa quem refresca
É a vida num todo que se compõe
É quem mergulha, quem acha
Quem muda, leva ou põe
É quem toca no fundo
Traz a vida que mergulha num rio também


O expresso do Rio Selvagem.

            Carmem olhava pela janela do trem, as belas paisagens que iam ficando para trás. Sua mente rebuscava timidamente sua vida. Ela não sabia se era feliz, se tinha alegrias, tristezas, se sua vida estava valendo a pena. Achou que era hora de pensar. Com calma. Merecia umas férias. Quinze dias bastavam. Falou com seu diretor que autorizou na hora. Afinal ela tinha já duas férias vencidas. Trabalhava muito. Arduamente. Começou do nada e hoje era gerente na área de montagem. Telas de computador. Lembrava-se do seu passado. Não foi bom mas o que passou, passou não volta mais. Lembrou-se quando chegou em Santa Fé. Não era uma cidade pequena. As margens daquele rio caudaloso ela se destacava pela sua beleza selvagem e pela sua competência. Não sabia por que dissera selvagem quando lá chegou. Talvez pelo seu frenesi de homens e mulheres que andam sem saber aonde ir. Queria esquecer tudo. Não lembrar. Passar uma esponja em sua mente. Sabia que não dava. Esquecer não é fácil.

             Nasceu em Cidade Santa. Pequena. As margens do rio onde a ferrovia passava e morava com sua Vó. Ali viveu boa parte da sua vida. Ali viu seus pais serem enterrados. Mortos por nada. Uma peste? Assim disseram. Morreu muita gente. Ela não, sua Vó também não. Precisava de um emprego. Lá não conseguiria. Estava com dezenove anos, terminou o segundo grau. Difícil estudar mais. Queria ser alguém se formar, quem sabe ser professora ou então outra profissão que não fosse aquelas famosas que seria impossível de conseguir. Achou que uns dias em Cidade Santa para rever sua Vó e alguns amigos bastavam. Depois iria para Vitória. Procurar uma boa pousada em frente ao mar. Aí sim, iria colocar sua vida em ordem. Nada tão estranho. Era comedida. Tinha uma boa quantia na poupança. Poderia ter um carro mas achou que morava a duas quadras do trabalho e não precisava.

             Seria umas férias onde se daria ao luxo do bom e melhor. Nada de economias. Carmem não era linda. Bonita sim, simpática sim. Uns cabelos negros, olhos negros, um rosto muito simpático. Sua voz era calma. Cativante. Teve alguns pretendentes. Mas nenhum deles lhe interessou. Seu corpo era bem feito e ela cuidava bastante. Mesmo trabalhando de sol a sol não deixava de frequentar a academia. Conheceu um Engenheiro Espanhol que iniciou um trabalho na mesma empresa que ela. Era simpático, alegre, despretensioso. Saíram diversas vezes. Nunca dormiram juntos. Carmem jurou a sua Vó que só iria fazer amor depois de casada.

              Gostava de viajar de trem. Quanto tempo não fazia isto. Muitas saudades. A janela enorme, a vista linda, o verde, o amarelo, o rio caudaloso, uma fazenda aqui outra casinha ali, uns dados adeus e a meninada correndo ao lado do trem. Sentiu fome e viu que não tinha almoçado. Levantou-se pegou sua bolsa e se dirigiu ao vagão restaurante. Não notou um homem mal encarado que a acompanhou até lá. Sentou-se duas mesas atrás dela. Carmem almoçou devagar. Não tinha pressa. Só chegaria em Cidade Santa lá pelas quatro e meia da tarde. Pelo visto o expresso estava no horário. Bebeu uma cerveja pequena. Deu-se ao luxo. Não fazia isto mas agora podia. Quando voltasse a sua poltrona iria cochilar até chegar ao seu destino.

              Pagou sua despesa e voltou calmamente. Ao atravessar um vagão para o outro, onde fica a porta de saída do trem, um braço a agarrou pelo pescoço. – Não grite. Se gritar enfio-lhe uma faca nas costelas. Tomou dela sua bolsa. Começou a forçar sua calça para baixo. Ele queria estuprá-la! Meu Deus! Isto não! Proteja-me. Ela gritou e mordeu com força as mãos do maníaco. Ele gemeu alto e a chamou de puta. Abriu a porta e a jogou do trem. Carmem não sentiu nada. Rolou em cima de algumas pedras e foi parar próximo a uma moita de capim colonião. Ficou desacorda. O trem sumiu no horizonte.

             Carmem acordou quase à noitinha. Não lembrava de nada. De nada mesmo. Quem era o que fazia ali nada. Sentia uma dor tremenda na testa passou a mão e viu que tinha um corte enorme. Deve ter sangrado muito mas agora já tinha coagulado. Não conhecia onde estava. Porque estava ali também não sabia. Levantou-se com dificuldade. Suas roupas rasgadas. Uma sede terrível. Começou a andar junto à linha do trem. Ouviu um barulho. Um barulho que achava que já tinha ouvido antes. Era um carro de boi. Atravessou um bosque e viu uma estradinha de terra. O carro de boi seguia devagar com duas juntas de dois bois cada uma. O carreiro era um menino de uns quinze anos. Correu para ajudá-la. Pediu para subir no carro pois ele estava indo para casa. Não era longe.

              Chegaram uma casinha de Sapé, pequena, apenas dois cômodos. Uma cozinha e um quarto. Feita de bambu com barro. Chão de terra. Carmem não estranhou. Não conheceu outra casa ou se conheceu não lembrava. Lico o menino disse que morava ali com seu pai. Não conhecera sua mãe. Ia sempre a Cidade de Manto Azul levar verduras e frutas para vender. Viviam disto. Seu pai ainda pescava alguns peixes e quando dava ele vendia também. À noitinha seu pai chegou. Assustou-se com Carmem. Lico explicou o que acontecera. Ele chamou Lico em um canto – Olhe filho, ela parece ser uma mulher fina. Não é daqui. Suas roupas mostram isto. – Pai, ela não trouxe nada. Não tem nenhuma muda de roupa extra. Nem documentos!

                Manuel não sabia ao que fazer. Não tinha ideias. Era homem da roça. Entendia tudo dela. De mulher não. A única lhe dera um filho e sumiu no mundo. Dificilmente ia a cidade para dar uma “fisgada” em alguma na Rua do Taichim. Agora soubera da tal AIDS. Evitava tudo. Não podia morrer enquanto Lico não fosse maior de idade. Lico sugeriu que ela ficasse ali por uns tempos. Quem sabe recuperava a memória. Pensaram em levá-la a Manto Azul mas lá não tinha delegado e nem prefeito. Era um arraial simplesmente.

                 Carmem ficou lá por muito tempo. Os dias passavam céleres. A noite sentava na porta da casinha e olhava as estrelas pensava quem era de onde era e o que fazia ali. Aos poucos acostumava a nova vida. Ajudava na horta, a colher jabuticabas, goiabas, laranjas, mangas tudo quando era época. Um dia foi com Lico a Manto Azul. Todo mundo veio para a porta. O pequeno arraial se assustou. Era uma mulher jovem e bonita. Vestia um short e uma camisa velha. Devia ser de Manuel. Ninguém sabia que ele estava com mulher. Ela fez algumas compras de roupas para ela. Roupas simples. A lojinha ficou cheia de olheiros.
                Carmem sem perceber começou a gostar de Manuel. Olhava para ele e sentia que o amava. Mas seria amor mesmo? Não sabia. O que era o amor? Também não sabia. Uma noite ele a beijou. Sentiu que ele não sabia beijar. Segurou sua língua e ele assustou mas deixou. Fizeram um amor louco. Ele não sabia como ela também não. Ela era virgem ele não mas não tinha nenhuma experiência. Foi gostoso. Ambos gostaram. Não parou por ai. Passaram a dormir juntos. Lico não se incomodou. Passou a gostar também de Carmem. Quem sabe ela poderia ser sua mãe? Manuel disse que queria casar com ela. Carmem achou melhor esperar para saber quem era.

               Passaram-se quase um ano. Carmem ao seu modo era feliz. Alí naquela casinha junto a Manuel não pensava em mais nada. Não tinham luz, TV, geladeira e o fogão a lenha dava tudo que precisavam para fazer a alimentação. Ela mesma fazia. Lavava e passava. Uma verdadeira dona de casa. Não engordou, seu corpo até ficou mas esguio. Cuidava dos seus cabelos. Suas roupas simples para ela bastavam. Manuel era calado. Falava pouco. Conversava com ela em monossílabos. Não sabia ler e nem Lico também sabia. Ela passou a ensinar aos dois. Compraram em Manto Azul, cadernos, lápis canetas e uma tabuada.

              Um ano e meio. Dois anos. Nada de Carmem voltar a lembrar. Ela não se preocupava mais com isto. Vivia feliz muito feliz ao lado de Manuel e para ela Lico era como se fosse um filho. Pensava que se um dia recordasse quem era não iriam deixa-los nunca. Uma tarde voltada da mata onde tinha muitos pês de jabuticaba e não abaixou a tempo de evitar uma galhada grossa de uma jabuticabeira. Bateu a cabeça tão forte que ficou zonza e caiu ao chão. Estava só mas meu Deus! Ela voltou a se lembrar. Tudo veio assim do nada e ela agora sabia tudo de sua vida. Voltou correndo. Chamando alto Manuel e Lico – Lembrei-me! Agora sei o que fui! Mas ao olhar o semblante deles ficou triste também. O medo de perdê-la era grande. E ela não sabia que atitude tomar.

               Dormiu abraçado a Manuel. Disse que nunca iria abandoná-los. Mas tinha de voltar em Cidade Santa para saber de sua Avó e depois iria a Santa Fé. Tinha lá um apartamento, roupas, móveis e dinheiro no banco. Precisava ver se tudo estava lá. Lico chorou quando ela partiu. Manuel abraçou-o e ambos choraram quando ela pegou o trem de volta a Santa Fé em Derribadinha. Carmem também chorou. Mas prometeu voltar. Manuel e Lico não acreditaram. Sabia que ela era uma moça de cidade grande, estudada e porque voltaria?

              Na janela do expresso Carmem olhava o rio, as casas as fazendas e o seu passado. Desceu sem pressa na estação de Santa Fé. A cidade pouco mudou. Um taxi a levou em seu apartamento. Fechado. O porteiro a reconheceu e sorriu quando ela contou por partes o que tinha acontecido. Disse que a policia, o diretor e muitos da empresa que ela trabalhava lá estiveram. Ele tinha copia da chave. Ela entrou. Olhou, não sentiu saudades. Saudades sim de sua tapera de barro com telhas de folha de coco e capim seco. Foi até a empresa. Uma surpresa de todos. O diretor pediu a ela para ir a sua sala. Uma festa. Era muito bem quista. Dois anos e meio fora e todos compreenderam o que aconteceu com ela.

                O diretor disse que sua vaga estava em aberto. Ela podia começar a trabalhar quando quisesse. O salario seria aumentado. Não disse nada. Iria pensar e depois dar uma resposta. Ele não entendeu. Não quer mais o seu lugar? Vai voltar para a tapera onde morou muitos anos? Ela não sabia o que fazer. Duvidas e mais duvidas. Pediu um prazo. Duas semanas. O diretor riu. Claro que sim. Você não vai deixar isto aqui para morar lá no mato em uma casinha de barro. Carmem foi para o apartamento não antes de passar no banco. Estava tudo lá e até mais com os juros. Quase um milhão e meio.

               Dormiu mal em sua cama de casal. Grande, colchão de mola, caro que comprou há muitos anos. Estava novo ainda. Ficou ali olhando para o teto e pensando. Dormiu sonhando com Lico e Manuel. Pela manhã já sabia o que fazer. Publicou no jornal local a venda de tudo. Apartamento mobiliado. Separou as roupas que precisava as demais doou para uma instituição de caridade. Deixou o dinheiro da poupança lá no mesmo banco. Tirou cem mil para despesas. Foi à empresa e agradeceu ao Diretor pela confiança. Abraçou a todos os seus amigos e ao espantado engenheiro espanhol que tinha namorado.

              Pegou o expresso novamente rumo a Cidade Santa. Precisava ver sua Avó. Desta vez prestou atenção a tudo no vagão de primeira classe e quando foi ao vagão restaurante ficou de olho. Nada aconteceu. Sorriu quando viu sua Avó viva. Foi uma festa o encontro das duas. Contou tudo. Ela compreendeu e a motivou a continuar com sua tomada de decisão. Deixou um cheque com ela de cinquenta mil reais.  Disse que voltaria daí a um ano e daria mais a ela. Em oito dias estava de volta. Desceu em Derribadinha. Uma maleta com poucas roupas. Nenhuma joia. Só com o saldo do dinheiro que tirou. Agora uns quarenta mil reais. Poderia ter comprado um carro, chegar lá de carro novo. Não era o que desejava.

               Comprou uma pequena charrete de três lugares. Um cavalo baio bom para trotar. Saiu de Derribadinha às duas da tarde. Às quatro e meia chegou a Manto Azul. O povo todo veio à porta. Nunca acreditaram que ela ia voltar. Já sabiam de sua história. Ela cumprimentou a todos. Sorria. Às seis e meia da tarde avistou a Casinha. Avistou de longe Lico que veio correndo e gritando chamando seu pai. Desceu da charrete e o abraçou com força. Era seu filho. Não de “barriga” mas de direito de mulher do seu pai. Manuel a olhou. Sorriu sem jeito. Pensou em abraçá-la. Estava bonita. Roupas novas. Sapatos novos. Um brinco de ouro. Teve medo. Achou que ela foi ali para despedir para sempre. Ela o abraçou. Disse – Manuel sou sua mulher. Nunca mais me separarei de você. Abraçaram-se ali, um beijo enorme. A lua brotou no céu. “Bunita, que nem um queijo redondo”.

               Ela de vez em quando voltava a Santa Fé. Levava Manuel e Lico juntos. Tirava dinheiro do banco, não muito, faziam umas comprinhas e voltavam ao seu lar, sua casinha de barro de chão de terra com um banquinho na porta para ver as estrelas e a lua quando estava cheia. Acertou em cheio. Nunca se arrependeu. O que sei é que viveram felizes por toda a vida. Um amor simples, uma aceitação de ambos que só podia ser de almas gêmeas!      

Não escrevas aos meus olhos.
Não me iludas se não
tens a intenção
de entregar-me 
o teu coração! 
Não escrevas aos meus olhos
lindas palavras de amor
se pensas fazê-lo
chorar de dor!
Não grites que me amas
se o teu silêncio 
revela que apenas 
me enganas!
Não quero mais 
os teus beijos...
Quero apenas um pouco de paz!
Vou ardendo de desejo
quando lembro
das tuas mãos deslizando
no meu corpo gélido
nas madrugadas 
que fui inocente
entregando-me a ti
Poeta indecente,
de corpo, alma 
e coração.
Mas agora basta!
Não viverei mais de ilusão.
Já sofri demais
nessa vida madrasta!