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sábado, 17 de maio de 2014

O estupro de Mary Jane.


O estupro.
A tarde consumida nojenta
Hipócrita mal servida deixa
No ar sensação de culpa.

Sexo abrupto perverso, mal feito!
Corpo lacerado humilhado, caído
Na sarjeta da indignação!

Dignidade ferida agonizante
Ato apavorante! À tarde segue
Consumada deitada morta-viva
Chorosa. Nas pernas da noite
O covarde, saindo escondido
Impune e sorrindo!
P. Coelho.

O estupro de Mary Jane.

        A cidadela amanheceu sorrindo. Mary Jane tinha sido estuprada. Todos chegavam as porta para celebrar o acontecido. Nos bares e restaurantes não se falava outra coisa. As lavadeiras de plantão que jogaram pragas agora estavam satisfeitas. Até mesmo o padre achou que estava na hora. Afinal Ela não foi culpada? Na prefeitura só se falava no estupro. O prefeito cancelou uma reunião para se reunir com Dona Santinha sua secretária para saber de tudo. Queria saber como foi, quem foi se ela gostou e Dona Santinha alimentava a mente depravada do prefeito. Pudera ela sabia como ele era. Sabia que quanto mais ela contasse mais sua excitação aumentava. E quem sabe eles ali naquele escritório enorme não poderiam simular um cena de estupro? A mente do prefeito fervilhava, Dona Santinha contava e gemia baixinho. Seria o máximo. Nunca fizeram aquilo no escritório.

           O barbeiro Elizeu contava para seu freguês Dionísio. - Você não acha que ela sempre quis? Dionísio ria e babava de lado com o acontecido. Pensava como ela era “gostosa”, provocante e sensual. Uma “bunda” sem igual. Devia ter sido uma “trepada” dos infernos. Manolo na praça dizia saber quem foi o estuprador, uma turma enorme se formou em sua volta. Inventou tantas mentiras que a maioria resolveu ir embora. Seu Geraldo Nicodemos não participava daquela farra. Ele tinha uma filha da idade dela. Nunca desejou isto para mulher nenhuma. Quem mais sentia era Valdinho da venda do Chico. Ele sempre sonhava com Mary Jane. Eram sonhos bons, sonhos onde ambos passeavam nos jardins das Camélia, atrás do parque São Judas Tadeu. Era o lugar preferido dos namorados que iam ali fazer juras de amor. Ela nunca ligou para ele e se ela o quisesse lhe daria todas as estrelas do céu.

          O estupro foi o fato do dia da semana e do mês. Cidade pequena gente fuxiqueira isto serviu para que os dias fossem mais diferentes que os outros. Todos se assustaram quando ficaram sabendo que Mary Jane foi encontrada amarrada na Árvore do Sonho da Rua do Esplendor as seis da manhã. Ela estava desmaiada e nua. Muito machucada, manchas e sangue seco espalhavam-se pelo seu corpo. Em cima dela, pregado na árvore um aviso preso por papelão – “E assim que tratamos as prostitutas”! Fartei-me, mas ela não é tanto o que dizem! – Foi Zózimo soldado quem a desamarrou. Ela gemeu quando caiu ao chão. Ele mesmo chamou a ambulância, mas uma centena de moradores que ficaram sabendo correram para ver. Ninguém tinha pena todos queriam ver o corpo dela. Uns prestavam atenção em suas nádegas outros queriam ver mais entre suas pernas. Ninguém acorreu para lhe dar um cobertor ou lençol para se cobrir. Estava exposta para todos.

          Mary Jane ficou cinco dias internada. Ninguém foi visitá-la. Parecia que suas amigas fugiam dela como o diabo foge da cruz. Ela morava sozinha desde que sua mãe morreu. Na escola atraia os olhares e na rua todos ficavam estupefatos com um rosto de anjo, os cabelos dourados cacheados, um busto sem igual. Com seu andar rebolado, com sua saia curtinha, com seu decote na blusa não tinha nenhum homem quem deixava de olhar para ela, dizer “hô! Gostosa”! Assovios eram aos montes. Ela ria baixinho. Todos diziam que ela dormia com a rapaziada toda. Na verdade Mary Jane não tinha namorado e era virgem apesar de que muitos viviam correndo atrás dela. Uma vez Jonny Bonito fez uma aposta alta. - Cem mil que eu a “como” em uma semana. E vou passear com ela por toda a praça de braços dados e beijando sua nuca! O dinheiro rolou no bar do Grilo. Mesmo falando alto com todos, ele garantiu que passou ela no papo várias vezes e ninguém acreditou. O caso da aposta foi parar na policia. Jonny Bonito teve que entregar o dinheiro. Dinheiro que não era dele e sim do seu Avô Comandante Sampaio.                     

           Quando saiu do hospital Seu Geraldo Nicodemos aconselhou que ela desse “parte” na polícia. – Não vale a pena Seu Geraldo. Eu conheço os praças e o sargento. Eles vão é rir quando chegar lá e o que o delegado vai dizer? Ele sempre me cantou por onde me via ou me encontrava. Achava que era por ser um homem da lei e eu devia ir para cama com ele. Nunca me viu como uma filha, um Velho nojento e sabia que eu era menor de idade. Eu tinha certeza que se fosse lá ele ia ficar olhando para minhas pernas me pedir para mostrar onde o estuprador bateu. Mary Jane caminhou seis quarteirões até sua casa. Não aceitou carona de ninguém. Conseguiu com a enfermeira Josiane uma saia e blusa para vestir porque nenhuma de suas amigas ousou lhe visitar e oferecer para ajudar. O povo como sempre estava nas janelas, nas portas e nos bares os olhares gulosos queriam ver onde o “felizardo” passou a mão.

          Não se sabe como dois dias depois chegou uma Delegada Federal na cidade. Parece que um jornal da capital publicou e ela uma feminista e defensora das mulheres não queria deixar passar de “barato” aquele fato. – Chega de dizer que a mulher é culpada. Se ela gosta de usar saia curta, se anda rebolando ou se tem blusa decotada é seu direito. Ninguém pode julgar que ela quer atrair os homens. Delegada Fabíola era famosa na capital. Prendeu um mundão de gente principalmente os “salafraios” como ela dizia. Foi ela quem sugeriu que as mulheres usassem uma agulha nos metrôs e ônibus. – Sem alguém te quiser “enconchar” mete a agulha no troço dele. Deixa-o gritar e berrar de dor e o resto deixa comigo! Era valente a danada da delegada. Chegou com o carro da policia cantando pneu. Entrou direto na delegacia. Ninguém soube dizer explicar o que ela queria e um praça a levou até a casa de Mary Jane. Esta a recebeu com um pé atrás. Por mais que ela tentasse mostrar que era amiga de Mary Jane não conseguiu nenhuma pista que levasse ao estuprador. Ela calou-se e a delegada desistiu.

        - Se ela não quer paciência. Doutora Fabíola retornou a capital não antes de prevenir o Delegado que ele era responsável. Se ele não descobrisse quem fora o culpado e se houvesse outro caso ele seria exemplarmente punido. Depois da visita da Delegada e quando souberam o que ela disse ao delegado os machões da cidade se calaram. Mary Jane não recebia mais assovios e ninguém gritava “gostosa”! Foi um período de calmaria até que de novo todos ficaram em polvorosa. Ninguém acreditava no que via. Nada mais nada menos que Jonny Bonito amarrado em uma árvore, de cabeça para baixo, totalmente nu, e dava para ver um punhal enfiado no seu anus, diversas agulhas enormes atravessadas em seu membro, um lado do seu escroto cortado à faca e sem a língua. Ela foi cortada em fatias e colocadas junto com seus dedos em um papel jornal na calçada.

        Claro que em cima tinha também um aviso pregado em papelão e que dizia – “Esta é a sina do estuprador”. Ele sempre mereceu! Desta vez o delegado se mexeu, afinal Jonny Bonito tinha família importante. Se ele não tomasse providencias iria pagar o pato sem duvida. Quem poderia ser? Seria ele o estuprador de Mary Jane? Mas ela uma menina de 16 anos, magrinha nunca podia nem ao menos segurar Jonny Bonito um homenzarrão de um e noventa com mais de cem quilos. E que de lá fazer o que fez! Mesmo assim ele foi até a casa de Mary Jane. Bateu e bateu e nada. A porta estava aberta. Ele entrou e não viu ninguém. As roupas de Mary Jane tinham sumido. Ele deduziu que ela partiu da cidade. Para onde? Ninguém nunca soube. Seu destino, o que fazia onde morava ficou guardado a sete chaves. Só uma mulher sabia, Dona Valdete. Todos diziam que ela era um fantasma, uma vampira que saia a noite para beber sangue humano. Claro era um folclore e ela gostava quando a chamavam de feiticeira do mal. Tinha todo o aspecto. Só faltava o chapéu cônico.

           Nas poucas vezes que andava pela rua e sempre à noite, usava um vestido longo preto, os olhos pintados de negro, cabelos enormes presos atrás. Poucas pessoas a visitavam há não ser aqueles que queriam fazer alguma maldade ou bruxaria com alguém. Ninguém viu quando Mary Jane entrou em sua casa depois da meia noite. Ficou por lá mais de duas horas. Mary Jane saiu com um embrulho pequeno e uma porção de um remédio que diziam lhe dobrar as forças. Dizem as almas do outro mundo que ela no dia seguinte sorriu para Jonny Bonito. Este um idiota perfeito a seguiu de novo. Não acreditou quando ela no quarto ficou nua, e começou a dançar em sua frente. Jonny Bonito com os olhos esbugalhados não queria acreditar. Ele sabia que ela o tinha reconhecido como seu estuprador. Jonny Bonito achou que desta vez ela ia gostar, adorar e não gemer de dor como fez antes. Ele não queria ter dado uma surra nela. Achou que não precisava, bastava ela abrir as pernas e colaborar. Mas não, ela se fez de virgem, gritou cuspiu nele e Deus sabe quer ele precisava comer aquela maldita.

             Agora era outro momento, um momento sublime. Ela deitou na cama de pernas abertas. Não tinha jeito ele correu e a abraçou. Sentiu uma picada no braço e em questão de segundos seu corpo ficou paralisado. Nada se mexia. Ele via tudo e sentia dores terríveis quando ela começou a “trabalhar” em seu corpo. Quando ela cortou sua língua ele deu um urro tremendo, mas não saiu nenhum som. Quando ela cortou dedo por dedo das duas mãos com um alicate grande ele achou que ia morrer. Quando ela cortou uma parte do seu escroto e viu um ovo saído ele implorou a tudo neste mundo e no outro que o salvasse. Depois calmamente ela enfiava em seu membro uma enorme agulha. De um lado a outro. Ele perdeu a conta de quantas agulhas foram e perdeu o sentido. Ainda bem que estava desacordado quando ela o transpassou com um punhal em seu anus. Ninguém a viu arrastando o filho da mãe pela calçada. Eram duas da manhã. Com uma corda o prendeu pelo pé e com muito sacrifício o levantou até uma altura considerada.

               Ela já tinha previsto tudo. Saiu da cidade por volta das três da manhã com uma mala e uma mochila. Tinha um bom dinheiro, pois sua mãe quando morrera lhe deu uma boa quantia e a senha e o banco estava anotado em um caderninho. Andou por onze quilômetros até a estrada federal. Lá pegou o primeiro ônibus para Vitória e de lá embarcou em um navio cruzeiro pelo Caribe. Já tinha comprado às passagens. Nunca mais voltou. Em Curaçao resolveu fazer seu novo lar. Comprou uma pequena loja de presentes e dizem os que por lá passam que ela se casou com um dinamarquês loiro lindo de morrer e viveram felizes para sempre!  

“O estupro juntamente com os maus tratos das crianças constituem os atos de maiores perversidades da espécie humana e somente cabíveis, na mente doente dos covardes”.

Estupro
Vivia sempre alegre pelos cantos da cidade
Todos que a viam se contagiavam com sua felicidade
De onde viria toda aquela alegria?
Qual seria o motivo pelo qual ela sorria?
Era quando fazia sol e também quando chovia
Os seus sonhos sempre alegre perseguia
E o sorriso de seu rosto nunca desaparecia
Até que um dia triste surgiu
E fui capaz de ver algo que vindo dela ninguém jamais viu
Eu a vi chorando e aquilo me assustou
Fui logo perguntando o que a amedrontou
Com uma voz distante ela mencionou
Uma história triste que me emocionou
Segunda ela um homem estranho a abordou
E daqui pra frente é o que ela me falou:
“Tirou de mim o que eu guardava
Para o amor que esperava
Levou com ele a minha esperança
De formar somente com um único homem a aliança
De dois corpos unidos que se amam
E que de amor até morrerem os dois se chamam”
O meu mundo desabou com tamanha crueldade
Como pode um ser humano ser capaz de tal maldade?
Destruiu daquela moça toda a sua dignidade
Levou seus sonhos, esperanças e também a felicidade.

Rafael Muniz. 

Pacto de sangue. O sonho de um grande amor.


É brando o dia, brando o vento 

É brando o sol e brando o céu. 
Assim fosse meu pensamento! 
Assim fosse eu, assim fosse eu!


Mas entre mim e as brandas glórias 

Deste céu limpo e este ar sem mim 
Intervêm sonhos e memórias... 
Ser eu assim ser eu assim!


Ah, o mundo é quanto nós trazemos. 

Existe tudo porque existo. 
Há porque vemos. 
E tudo é isto, tudo é isto!


Fernando Pessoa

Pacto de sangue.
O sonho de um grande amor.

                 A noite chegava calma e silenciosa. Não sabia se haveria luar. Agora não me importava com mais nada. Ali naquele banco tosco daquele parque a vida perdera o sentido. Rosa parecia dormitar em meu colo. Devia fechar suas pálpebras, mas não fiz. Era o único elo que me mantinha ali a olhar para aqueles olhos azuis turquesa que nas últimas oito horas me mostraram um outro sentido da vida. Já sentia a rigidez do seu corpo. Uma bala no pescoço a levara para longe de mim. A vida estava se esvaindo. Eu sabia que também ia morrer. Era questão de tempo. Com a bala que passou próximo ao meu coração ou pela própria policia que fizera um cerco em minha volta. Sorria de leve. Minha arma? Um cabo de guarda chuva marrom. Eles? Dezenas gritando para sair com as mãos para cima. Deram-me cinco minutos. Cinco minutos que me fizeram voltar no tempo. Meu grande amor partiu e eu queria partir com ela. Se aguentasse eu sairia correndo com a “arma” a gritar e assim minha vida seria riscada do mapa por centenas de tiros. Lembrei-me do filme Butch Cassidy. Que morte gloriosa. Minha mente procurou no tempo os momentos mais felizes da minha vida. Momentos que não se apagarão na historia. Oito horas. Oito horas sublimes que valeram toda uma vida sem sentido. 

                Tinha sido demitido. Assim sem mais nem menos. Eu sabia do meu câncer no pulmão. Meus chefes não. Não contei. Para que? Para sentirem piedade de mim? Poderia mostrar meus exames. Eles não poderiam me demitir. Mas nunca fui de pedir nada. Aceitava o que vinha sem reclamar. Se não me queriam mais paciência. Sessenta e seis anos, sem conseguir me aposentar. Chorar? Acho que não vale a pena. Nunca casei me uni a uma jovem há muitos anos atrás. Tivemos um filho. Ela conheceu outro e se foi. Foi melhor assim. Para mim e para ela. Nunca fui de ficar revoltado. Todos diziam que eu era calmo, nunca me viram zangado e eu acho que era assim mesmo. Não reclamava da vida. Para que? Pagaram meu Aviso Prévio. Certo. Vá à agência do Banco do Brasil na Avenida Paulista. Lá você recebe seu Fundo de Garantia. Peguei um ônibus da Paulista. Avistei próximo ao Parque Trianon a agencia bancária. Dei o sinal e ao descer pisei em falso. Caí em cima de uma senhora que passava. Pedi desculpas. Perdão. Ela levantou e me vi diante dos mais belos olhos azuis turquesa que já tinha visto na vida.
         
                Os cabelos brancos, um rosto ainda jovem, mas devia ter mais de sessenta anos. Um corpo bem feito. A convidei para um café para me redimir. Aceitou. Sentamos num barzinho em uma galeria que nunca tinha entrado. Afinal passei anos e anos sem ir à Avenida Paulista. Fiquei olhando aquela bela mulher. Seus olhos me hipnotizavam. Meu coração batia. Caramba! Nunca bateu assim por mulher nenhuma. Seu sorriso era confortador, me traziam paz e tranquilidade. Falamos banalidades. Disse que estava desempregado. Ia retirar meu Fundo de Garantia. Ela deu um sorriso maroto. Dinheiro! Para que serve? Nunca me serviu para nada. Vi uma pequena lágrima furtiva naqueles belos olhos azuis turquesa. A convidei para ficarmos umas horas no Parque Trianon. Ela sorriu e aceitou de pronto.

                Olhe, nunca senti em minha vida o que estava sentindo. Nossa! Nesta idade me apaixonar? Toda vez que ela sorria mexia por dentro. Para dizer a verdade não a desejava sexualmente. Nem me passou pela cabeça. Mas meus olhos não saiam dos dela. Chegamos ao parque vazio àquela hora da manhã. Achamos uma sombra gramada, tirei meu paletó para ela sentar-se. Ficamos ali conversando sem ver as horas passar. Parecia que já éramos íntimos de muitos e muitos anos. Eu não tinha pressa. Não tinha ninguém a me esperar. O barracão que morava era alugado. Não tinha quase nada lá. Na periferia. Bem longe. Gostaria que àquelas horas ali com ela não passassem nunca. Contei pouca coisa de minha vida. Nunca tinha casado e a mulher que tive ao meu lado me abandonou. Expliquei que achei melhor assim. Não havia amor entre nós. Meu filho? Tinha seis meses quando ela partiu. Deveria estar agora homem feito.

                  Ela ficou calada por algum tempo. Eu também não disse mais nada. Não deixava de olhar para ela. Uma brisa gostosa acariciava seu rosto e o meu. O sol de vez em quando se escondia entre as nuvens. Estávamos muito perto um do outro. Levei meus lábios a sua face. Ela não se afastou. Beijei de leve seus lábios. Meu corpo tremia de emoção. Ela não esboçou nenhum abraço, mas deixou que a beijasse. Deitei na grama e ela também. Ambos olhando para o céu através das árvores. Uma borboleta pousou em um galho próximo. Ela começou a falar. Eu gostava de sua voz, suave, calma, sem impostação. Contou-me parte de sua vida. Diferente da minha. Bem diferente. Vi que ela era uma mulher de fibra, estudada e eu quem sabe um perdedor. Não seria mulher para viver ao meu lado se tivesse nos conhecido antes.

                  Tivera uma infância atribulada. Seu pai um político conhecido. Quase não dava atenção para a mãe. Colocaram-na em um colégio interno. Mesmo nas férias ela viajava com a mãe e o pai nunca aparecia. Conheceu a Europa, nunca foi aos Estados Unidos. Não tinha interesse. Não que desgostasse dos americanos nada disto, mas ela gostava de ver e sentir a história de perto. E a história está na Europa ela disse. Roma, Veneza, Paris, Madrid, Berlim, Lisboa, tantas que ela perdeu a conta. Quando fez vinte e um anos recebeu uma parte da fortuna do pai. Mais de oitenta milhões de reais. Uma fábula. Não sabia o que fazer com o dinheiro. Encontrou um homem. Lindo, parecia um artista de cinema. Uma paixão avassaladora. Casaram com uma festa de arromba. Seu pai convidou dezenas de políticos. O casamento durou seis meses. Ele fugiu com outra e boa parte de sua fortuna.
                 
                    Ela era simples na sua maneira de contar. Que coisa meu Deus! Estava enfeitiçado por uma mulher da minha idade e eu não tinha nada para oferecer. Deu fome. Convidei-a para um lanche. Voltamos novamente ao barzinho. Local sossegado. Não comi quase nada. Ela mal e mal engoliu alguma coisa. Tomei um uísque e ela também. Vi que chorava. Não perguntei o porquê. Afaguei os seus cabelos brancos. Ela me olhou nos olhos. Quando olhava eu me desmanchava. Voltamos ao parque. Ainda vazio. Era uma terça feira. Agora umas duas da tarde. Ela ainda chorava. Olhou-me e disse que ia morrer. Assustei. Porque? Perguntei. – Rosa sorria agora. Posso pedir para não ter pena de mim? – Claro disse. Tenho leucemia. O médico disse que seria um ou dois meses no máximo. Não quero morrer entubada em um hospital.

                   Pensei comigo que dupla estávamos fazendo. – Contei para ela que também tinha um câncer. Não tinha medo de morrer. Que a morte viesse quando chegasse a hora. Eu ia saber enfrentar. – Ela me perguntou assim sem mais nem menos – Já ouviu falar no casal Bonnie e Clyde? Sim disse. Morreram felizes fazendo o que gostavam. Não entendi – Quer morrer comigo? Ela me olhava com um sorriso zombeteiro. Nunca pensei isto. Morrer como? – Nós dois como Bonnie e Clyde – Continuo não entendo. Explique melhor. – Você não tem de ir ao banco? – sim! – Pois então, entramos você recebe e anunciamos um assalto. Levamos uma quantia, tomamos as armas dos vigilantes e esperamos a policia chegar. Jogaremos o dinheiro para o ar, sairemos rindo e gritando e morreremos crivados de balas!

                 Que ideia estapafúrdia! Morrer assim? Mas ela me olhou com aqueles olhos azuis turquesa que fiquei sem o que dizer. – Olhe, serrei um cabo de guarda chuva, engana bem como uma arma. Entramos você recebe seu dinheiro e eu anuncio o assalto. Tomamos a arma do vigilante, damos uns tiros para cima para assustar e saímos correndo, não antes que eu jogue todo o dinheiro roubado para cima. Será uma festa! – Minha mente estava a mil por hora. Morrer agora? Assim? Ao lado dela? – Ela me beijou. Ali naquele banco do parque, senti seus lábios colados ao meu. Se morresse agora morreria feliz. Um beijo que nunca tive. Lábios macios, molhados, que sensação incrivelmente deliciosa. Olhou-me. Lindos seus olhos azuis turquesa. – Não precisa ter medo - disse. Eu protegerei você lá no céu!

                  Interessante. Entrei no banco sem medo. Cheio. Fui até o caixa. Disseram que tinha de esperar. Ela anunciou o assalto. Todos deitaram no chão. O vigilante levou a mão à arma. Eu disse não. Se tirar morre na hora. Nossa! Eu agora era o Boniee? E a Clyde o que fazia? Pegava o dinheiro do caixa. Ria a mais não poder. As pessoas deitadas no chão não entendiam. Ouvi um tiro, vi o sangue saindo do pescoço dela. Ela me olhou e disse vamos – Jogou o dinheiro para cima. Uma algazarra de todos querendo pegar. Saímos do banco. Outro tiro entrou nas minhas costas passou perto do coração e saiu perto do ombro esquerdo. Não senti dores. Ela não aguentava andar. Carreguei-a. Nenhum policial na porta. Atravessei a avenida sem o sinal abrir. Carros frearam. Batidas, uma algazarra. Ela queria sorrir, uma golfada de sangue saiu de sua boca.

                   Entrei no parque. Ninguém atrás de mim. Fomos para o nosso banco preferido. Um casal estava lá. Gritei para saírem e vendo o sangue correram alameda acima. Deitei-a no meu colo. Ela sorria. Queria falar, mas o sangue não deixava. Com os dedos fez sinal de positivo. Sentia agora uma dor tremenda. Ela tremeu e parou de se mexer. Acho que tinha morrido. Olhava seus olhos azuis de turquesa que permaneciam abertos. Minha mente não pensava em nada agora. Só em olhar para ela. A noite chegou de leve, comportada. A polícia começou o cerco. Achavam que estávamos bem armados. Queria gritar, sair correndo como fez Butch Cassidy. Queria morrer logo crivado de balas para encontrá-la no céu. Minhas pernas não me obedeciam. Uma nuvem começou a se formar. Fechei os olhos dela, dei o último beijo. Meu corpo caiu sobre o dela. Não vi mais nada. Acho que tinha morrido.

                   Os jornais deram a notícia em letras garrafais – Casal de idosos assaltam banco e morrem no Parque Trianon. Mais embaixo dizia – Rosa Allions, filha do senador Norberto Allions já falecido e sua esposa Nair Allions também falecida, e Ramon Silva, endereço desconhecido morreram ontem no Parque Trianon, após fazerem um assalto inexplicável na agência do Banco do Brasil. Não levaram nada, pois jogaram o dinheiro para o alto. Clientes disseram que pareciam loucos, pois ficaram sorrindo o tempo todo. A polícia os cercou no parque e não foi preciso dar um tiro. Encontraram os dois abraçados mortos e sorrindo um para o outro. Uma história de amor? Ele tinha sessenta e seis anos e ela sessenta e cinco. Para ela não havia motivos de assalto. Descobriram que em sua conta corrente tinha mais de cem milhões de reais.

                    A verdade, a história verdadeira nunca seria contada. O porque de um assalto infeliz e claro sujeito a morrer. O porque se ela era rica e não precisava disto. A autópsia mostrou que ela e ele estavam marcados para morrer. Ambos com câncer avançado. Seria este o motivo? Dizem a boca pequena que toda terça à tarde no Parque Trianon um perfume de rosas uma aroma com uma fragrância desconhecida percorre todas as suas dependências. Muitos foram lá para ver, mas poucos amantes tiveram a sorte de sentir aquele perfume sublime! Rosas com amor!

Ela ia, tranquila pastorinha, 

Pela estrada da minha imperfeição. 
Segui-a, como um gesto de perdão, 
O seu rebanho, a saudade minha...


"Em longes terras hás de ser rainha 

Um dia lhe disseram, mas em vão... 
Seu vulto perde-se na escuridão... 
Só sua sombra ante meus pés caminha...


Deus te dê lírios em vez desta hora, 

E em terras longe do que eu hoje sinto 
Serás,  rainha não, mas só pastora  _.


Só sempre a mesma pastorinha a ir,  

E eu serei teu regresso, esse indistinto 
Abismo entre o meu sonho e o meu porvir...


Fernando Pessoa