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domingo, 17 de junho de 2012

A vingança de Chico Mortalha.



O sentimento do avesso

Por te querer tanto
não mais te quero
Por me fazer pranto
não mais espero
Por te querer encanto
não mais me espanto
Meu sentimento é avesso
verso e reverso
acolhimento e arremeço
os dois lados da mesma moeda
amor e ódio no mesmo endereço
Te quero aqui
te quero distante
te recebo em meu leito
te vejo errante
Aconchegada ao teu peito
te desejo amante
não te quero livre e saltitante
te almejo preso ao meu regaço
te encontro no tempo de um abraço
Vá embora
Fique aqui
Não demora
Saia de mim

Úrsula de Almeida Vairo

A vingança de Chico Mortalha.

Chico Mortalha, o matador.

É uma história que me foi contada por um amigo um dia quando chorávamos a vida em um botequim de uma esquina na Rua do Machado. Eu estava quase dormindo quando ele começou. Não sei por que bebia, não era um ébrio isto não. Pode ser que minha vida acabou de pronto quando perdi meus pais em um desastre de avião. Solteiro, dependente dos dois sofria calado sua perda. Os amigos me consolaram por uns tempos depois me esqueceram. Mas minha dor continuava. Sem emprego parei de estudar. Agora que ninguém poderia se interessar por mim bebia aqui e ali. Um ébrio sem motivo aparente a chorar um passado que já devia estar morto há muito tempo.
Gastei o que meu pai tinha de reserva e aos poucos vendi tudo que tinha. Mas eu parei de chorar quando conheci Neco. Um amigo verdadeiro. Foi ele quem me contou a história de Chico Mortalha e Tininha, a gostosa. Não foi uma história de mil e uma noites, não poderia ser. Foi uma história contada de arredo em duas ou três noites e talvez fosse à história que transformou a minha vida, pois resolvi ser escritor. Escritor? Risos, nem pense nisso. Andei escrevendo tanto e ninguém se interessou. Coloquei no papel tudo que o Neco contou. Publiquei em um blog. Poucos leitores e não desisti. O conto do Chico Mortalha se transformou em um incentivo. Um dia alguém disse que seria ótimo escrever um livro. Assim o fiz, mas quem publicaria? Mas deixemos esta trilha do conto, pois aqui vamos contar é a vida de Chico Mortalha.
Nasceu de família simples, pai professor e mãe dona de casa. Aos três anos descobriram que ele era gago. Muito. Falava com extrema dificuldade. Seu nome verdadeiro era Simplício da Anunciação Louzeiro. O apelido veio depois. Muito depois quando ele matou a pedradas seu primeiro desafeto. Chico à medida que crescia evitava falar. Via o semblante dos outros a rirem dele e isto ele odiava. Até os onze anos de idade brigou muito. Chegava sempre em casa com as roupas em farrapos. Aos doze ao voltar do colégio uma turma começou a gritar e a zombar dele pela sua incapacidade de falar direito. Lá vai o gago! Xô Gaguinho! Risos e risos. Chico pegou uma pedra e arremeçou na multidão que troçava dele. A pedra pegou bem na testa de Leandrinho que morreu na hora.
Durante muito tempo ficaram longe dele. Claro era menor de idade e o delegado admoestou sua família para olhar melhor o filho e educá-lo conforme os preceitos cristãos. Mas tudo na vida tem uma razão de ser e um recém-chegado da capital achou que poderia troçar de sua gagueira. Mais um morto. Desta vez a faca. Levaram-no preso. Com medo de linchamento foi transferido para a penitenciária estadual até o julgamento. O camburão sofreu um acidente na estrada e todos morreram menos Chico Mortalha. Chico resolveu que não iria preso mais. Só morto. Fugiu para outro estado. Lá começou a trabalhar como servente de pedreiro. Por pouco tempo é claro, pois mandou para o inferno um companheiro que morava com ele em um quartinho e achou que ele era “viado”.
Dai para matador foi um pulo. Era um matador que ninguém conhecia. Só um sabia como ele era. Seu padrinho Malecio. Padrinho? Risos, nada disto. Conhecia seu segredo quando mandou para a cova o amigo de quarto. Ofereceu um serviço, dois, três e agora tinha perdido a conta. Tornou-se um matador famoso entre os bandidos e até entre grandes homens da sociedade que não hesitavam em lhe pedir um trabalhinho. Ganhou muito dinheiro. Guardava tudo em poupança em diversos bancos. Assim era mais fácil diversificar e não ser identificado. Um dia se encheu de tudo. Falou para seu padrinho que não mais iria matar. Ia mudar de vida. Malecio riu. Duvido – disse. Mas Chico Mortalha sumiu no mundo. Foi parar em uma cidade lá perto de Alta Floresta no Mato Grosso em um pequeno povoado de menos de cinco mil habitantes chamado Martelo.
Abriu um pequeno bar, e fez muitos amigos. Falava pouco. Alguns acharam que era mudo. Tinha medo de sua gagueira. Gostava de sua nova vida. No fundo do bar construiu uma pequena vivenda e lá tinha uma sala, uma cozinha, um quarto e tudo que ele precisava para viver tranquilamente. Comprou muitos livros e passou a ler sem parar. No bar sempre tinha um embaixo do balcão. Isto o ajudou muito. Através dos livros conheceu lugares, viajou pela Europa, Ásia, Oceania, e Américas. Notou que sua gagueira diminuía. Chico Mortalha se transformou. Um simples homem um emérito matador agora era bem quisto na cidade. Até o delegado se dizia amigo o que ele matinha um pé atrás. Tudo ia bem, mas sua vida não tinha jeito. A desgraça não tardou a se aproximar novamente.

Tininha, a gostosa.

Tininha estava agora com dezesseis anos. Olhe Tininha era indescritível. Era a mulher mais gostosa de Martelo. Quando ia a Alta Floresta era comum batidas de carros, mulheres querendo dar uma sova nela, maridos sendo beliscados pelas esposas, noivados desmanchados. Incrível! Mas olhe, tente analisar Tininha. Coxas grossas lisas queimada de sol. Um metro e sessenta bunda redonda arrebitada. Não tinha barriga e um belo par de seios que ela fazia questão de deixar à metade a mostra. Sempre usou uma microssaia. Sempre de cor berrante. Vermelha, amarela, rosa e sapatos altos. Lábios carnudos um olhar profundo reluzente como se fossem duas enormes jabuticabas. Um cabelo comprido pintado de vermelho dava o tom lascivo que ela completava em tudo que tinha em volta de sí.
Quando Tininha fez doze anos sofreu uma tentativa de estupro por parte de seu tio. Ele entrou no seu quarto e a viu trocando de roupa. Estava sem calcinha e seu púbis apesar da idade, era espesso, liso e brilhante. Isto colocava qualquer um de “pau duro” na hora. E foi isto que aconteceu. Ele tentou conversar e ela gritou. Mesmo com o pinto para fora ela se recusou a pegar e não parava de gritar. Seu pai chegava a casa e ouvindo os gritos correu para seu quarto vendo a cena dantesca de um estupro no seu inicio. Seu tio pulou a janela e sumiu da cidade. O pai de Tininha nervoso não aguentou olhar para a filha seminua com aquele púbis lindo, aqueles seios desabrochando e saiu rápido dali com o pau subindo por dentro da calça.
Tininha cresceu. Sabia que era gostosa. Não escondia. Que os outros olhassem suas coxas, seus seios, seus lábios carnudos e seus olhos negros enormes e brilhantes. Todos que a olhavam diziam que dariam tudo para uma noite com ela. Mas ninguém sabia se ouve alguém que comeu a Tininha. Um dia o filho do seu Antônio do armazém, metido a Doutor, pois tentara se formar com advogado e não conseguiu, falou aos quatro ventos que tinha comido a Tininha. Não deu outra. No sábado na praça, à noite no “foot” Tininha aproximou dele e o chamou de tudo. Viado, fresco, filho da puta, você comeu sua mãe e nunca encostou a mão em mim. Realmente Tininha era virgem. Nunca pensou em dar para ninguém a não ser para seu príncipe que um dia sabia que ia encontrar.
Continuava na escola. Terminou o segundo grau e tentava um emprego na farmácia do Seu Thadeu. Mas quando foi conversar com ele viu que suas calças se avolumaram. Mais um de pau duro pensou. Desistiu. Pensava em ir embora de Martelo. Nem Alta Floresta serviria para ela. Melhor ir para longe. Se todos a achavam gostosa e ela sabia que era porque não aproveitar na capital em algum programa de televisão? Mas precisava dos dezoito anos. Dezesseis não davam. Agora evitava andar muito pelas ruas de Martelo. Sabia que se facilitasse seria estuprada em qualquer canto. Mas como disse antes a vida tem os caminhos traçados. O de Tininha era só um. No sábado foi à padaria quando ao passar em frente ao bar do Chico Mortalha três jovens da cidade começaram a esfregar e passar a mão nela. Belisca aqui, aperta dali e soltaram sua blusa que sem sutiã os seios apareceram em todo seu esplendor.
Tudo aconteceu muito rápido. Tininha correu para dentro do bar. Chico Mortalha não gostou dos rapazes agindo daquela maneira. Tentou “maneirar” aconselhar, mas um deles o mandou “tomar no rabo”. Foi à conta, Chico Mortalha o pegou pelo colarinho e o arremessou fora do bar. O danado caiu como uma banana podre na rua. Os outros tomaram as dores e avançaram em direção a ele. Chico Mortalha era um matador. Treinado para matar. Matava a tiros, faca ou punhal e era mestre com as mãos. Ninguém sabia do perigo que corria. Na carótida de um ele partiu seu pescoço e do outro pegou no seus ovos apertou e quando os olhos esbugalharam ele meteu os dois dedos e os olhos saltaram para fora. Uma gritaria sem sessar. Dois mortos. Um aleijado. Ninguém mais no bar para testemunhar a não ser Tininha, a gostosa.
Tininha chorava e via Chico Mortalha espantado com tudo. Tentou agradecer, mas sua voz não saia. Pegou na mão de Chico Mortalha e beijou. Ao beijar sentiu seu cheiro e sabia. Chico Mortalha era seu príncipe. Era o seu homem esperado. O abraçou e lhe deu um longo beijo. Gritou para ele antes que a policia chegasse que ele não deixasse de procurá-la. Ele era seu homem e ela não queria perde-lo. – Estou indo para Alta Floresta, espero você lá na Rua dos Cabritos 44. Tenho uma amiga lá. Não falte eu te amo muito!

Chico Mortalha o matador e Tininha, a gostosa.

Só deu tempo para ele pegar umas roupas, dinheiro que tinha guardado e sumiu no meio do mato e dali em diante ninguém nunca mais o viu. Um dia apareceu na cidade um homem engravatado dizendo ter uma procuração sua. Vendeu tudo. E sumiu de novo da cidade. Tudo deu certo agora na vida de Chico Mortalha. Na rua dos cabritos encontrou Tininha, a gostosa. A beijou como nunca tinha beijado uma mulher. No melhor Motel da cidade ele a comeu saboreando cada pedaço. Assim como ela ele também era virgem. Ficaram se amando por uma semana. Ele não saia de cima dela. Arrumou em Vargem Alegre, uma cidade próxima ao Rio de Janeiro um homem que lhe fez documentos novos para ele e ela. Agora ele se chamava Paulo Roberto Santini e ela a senhora Vanessa Santini. Claro tinham se casado. Conseguiram um visto para os Estados Unidos e lá se radicaram.
Em Sacramento na Califórnia ele abriu um mini mercado. Tininha era sua companheira em todas as horas. Continuava gostosa, mas agora se vestia pudicamente. Iam à igreja pentecostal, aprendeu inglês, e hoje seus quatro filhos são a alegria do lar. Não sei se eles ainda moram lá. Soube que um pé rapado morador do Martelo os viu na rua principal e os chamou. Nunca mais voltou para sua terra e sumiu naquele enorme estado americano. Se Chico Mortalha deu um jeito ninguém sabe. Claro, cinco anos depois acharam após uma tempestade de areia no deserto de Mojave uma caveira cheia de buracos de bala.

Neco parou de contar. Disse que esta era a história. Claro que dei um toque de escritor. E quem não dá? Foi a minha primeira história que nunca esqueci. Foi meu inicio nas sendas da escrita e hoje tenho oito livros publicados. Dizem que sou famoso. Não sei. Para dizer a verdade um dia em visita aos Estados Unidos fui a Sacramento, mas nem sinal de Chico Mortalha. Uma cidade grande como aquela não seria fácil. Uma agulha no palheiro. Um tarde quando saia de um cinema em um shopping vi uma garota morena, com uma micro saia colorida, pernas morenas lindas, uns seios de tirar todo mundo do sério, uns lábios carnudos, olhos negros brilhantes, cabelos vermelhos longos e esvoaçantes de braços dados com um cara magrinho, caolho, boca murcha, andava mancando e até ri dele quando observei ao seu lado um homem grande, bigodudo, dentes de ouro que todos chamavam de Don Castilho e cercado de capangas todos armados. Levei o maior susto me mandei e sai correndo quando ela gritou – Chico Mortalha! Onde você deixou o carro?

Tercetos

Noite ainda, quando ela me pedia 
Entre dois beijos que me fosse embora, 
Eu, com os olhos em lágrimas, dizia: 

 “Espera ao menos que desponte a aurora! 
Tua alcova é cheirosa como um ninho... 
E olha que escuridão há lá por fora! 

Como queres que eu vá triste e sozinho, 
Casando a treva e o frio de meu peito 
Ao frio e à treva que há pelo caminho? 

Ouves? é o vento! é um temporal desfeito! 
Não me arrojes à chuva e à tempestade! 
Não me exiles do vale do teu leito! 

Morrerei de aflição e de saudade... 
Espera! até que o dia resplandeça, 
Aquece-me com a tua mocidade! 

Sobre o teu colo deixa-me a cabeça 
Repousar, como há pouco repousava... 
Espera um pouco! deixa que amanheça!" 

E ela abria-me os braços. E eu ficava.

sexta-feira, 1 de junho de 2012

A canção de Bernadete




A FLOR E A FONTE
"Deixa-me, fonte!" Dizia
A flor, tonta de terror.
E a fonte, sonora e fria
Cantava, levando a flor.

"Deixa-me, deixa-me, fonte!”
Dizia a flor a chorar:
 “Eu fui nascida no monte...
“ Não me leves para o mar”.

E a fonte, rápida e fria,
Com um sussurro zombador,
Por sobre a areia corria,
Corria levando a flor.

"Ai, balanços do meu galho,
“ Balanços do berço meu;
 “Ai, claras gotas de orvalho
“ Caídas do azul do céu!..."

Chorava a flor, e gemia,
Branca, branca de terror.
E a fonte, sonora e fria,
Rolava, levando a flor.

"Adeus, sombra das ramadas,
“ Cantigas do rouxinol;
 “Ai, festa das madrugadas,
“ Doçuras do pôr-do-sol;

"Carícias das brisas leves
“ Que abrem rasgões de luar...
 “Fonte, fonte, não me leves,
“ Não me leves para o mar!"
*
As correntezas da vida
E os restos do meu amor
Resvalam numa descida
Como a da fonte e da flor..
Vicente de Carvalho

A canção de Bernadete

           O sol estava vermelho junto às nuvens escuras que chegavam de mansinho naquela tarde fria de final de inverno. Bernadete se dirigia para sua casa depois de fazer sua peregrinação de casa em casa pedindo ajuda para sua mãe. Não tinham o que comer. Seu pai morreu de tuberculose e sua mãe ia pelo mesmo caminho. Mas Bernadete não sabia disto. Apenas oito anos e ninguém para explicar a ela que sua mãe partiria em breve. Não fora um dia ruim. Ganhou um pouco de arroz, um pouco de macarrão. Não era nada, mas daria para uns dois dias as duas se alimentarem. Bernadete não estudava. A escola não aceitou com medo que ela passasse a doença para as outras alunas.

           Não tinham luz elétrica e água encanada. Ela tirava a água necessária na cisterna no fundo do quintal. Bernadete cantava. Estava feliz. Dois dias sem ter o que comer. Sua mãe lhe ensinou a cantar nas horas difíceis. Cantava e sonhava com a música que aprendeu com ela. Luar do Sertão. Sozinha pela rua quase deserta ela cantava. “Não há, oh gente, não luar Como esse do sertão. Oh que saudade do luar da aminha terra, lá na serra branquejando, folhas secas pelo chão...”. Bernadete amava cantar esta canção. Ao entrar em casa saudou a mãe carinhosamente. Pela primeira vez não teve resposta. Foi até ao quartinho e sua mãe inerte. Não falava. Ela balançou chamando Mamãe! Mamãe! Era o fim. Ela sabia. Sua mãe se fora. Ela a tinha prevenido.

           No dia seguinte enterraram sua mãe no cemitério da Saudade no centro da cidade. Uma senhora da prefeitura se encarregou de tudo. Os olhos de Bernadete estavam vermelhos de tanto ela chorar. Agora não chorava mais. Esqueceu-se de pensar para onde ia, qual seria seu destino. Não conhecia ninguém. Nem sabia se tinha algum parente. Sua mãe nunca disse nada. Cantou baixinho quando sua mãe desceu a sepultura para sua última morada. “Este luar cá da cidade tão escuro, não tem aquela saudade do luar do meu sertão!”. A mulher da prefeitura disse para ela arrumar suas coisas. Ela ia morar com Dona Heloisa mulher do Seu Nivaldo o tabelião. Bernadete não disse nada. Não conhecia ninguém. Quem sabe seria feliz lá?

            Dona Heloisa a olhou de uma maneira que a fez tremer e baixar a cabeça. Disse – Menina, eu não gosto de preguiça. Não gosto de gente respondona. Não gosto de gente suja. Portanto faça o que eu mandar e vamos viver bem as duas. Curto seco e grosso. Nada mais. Nem uma palavra de carinho. Perdera sua mãe e agora perdera também alguém que a pudesse acariciar e dizer palavras como sua mãe dizia – Eu gosto de você, eu amo você. Bernadete recebeu as tarefas do dia. Varrer e passar pano molhado em toda a casa. Limpar todos os dias o quintal das folhas das arvores. Arrumar as camas, lavar as roupas dos meninos. Esqueci-me de dizer, Dona Heloisa era mãe de Larita e Lourenço. Não reclamou. Ambos eram quase da mesma idade dela com exceção de Lourenço. Dois anos mais velho. Quem sabe seriam amigos?

           Queria ser amiga deles, mas Dona Heloisa não deixou. – Você é empregada eles são os patrões. Fique no seu lugar. Bernadete quase ficou triste, mas lembrou de sua mãe e cantou: - “Não há oh gente, oh não luar...” isto a fazia lembrar-se da sua mãe e assim ela sorria. Seu Nivaldo nunca a cumprimentou. Nem olhava para ela. Era normal. Ela aceitava. Dona Heloisa não quis colocá-la na escola. Não disse o porquê. Bernadete ficava quando tinha folga escrevendo seu nome. Achou um livrinho de beabá jogado no lixo. Em pouco tempo aprendeu a ler sozinha. Ela era muito inteligente.

           O tempo passou. Os anos passaram. Os filhos de Dona Heloisa foram estudar em um colégio interno na capital. Bernadete torcia contando os dias e as horas quando eles de férias voltavam para casa. Ela se sentia feliz com eles ali. De vez em quando Larita falava com ela, mas Lourenço nunca. Estava ficando um belo rapaz. Com seus dezesseis anos já era bem alto, seus cabelos loiros caiam na testa e era um charme vê-lo balançar cabeça para tirá-los dos olhos. As moças da cidade morriam de amores por ele. Bernadete estava com quatorze anos. Nunca foi bonita. Tinha uma perna mais curta que a outra e andava mancando. Seu rosto não era feio apesar de ter os cabelos crespos e por isto ela mesma o cortava para não ficar grande demais. Tinha um lindo sorriso e isto encantava quem não a conhecia.  Dona Heloisa a presenteava uma vez ou outra com as roupas de Larita que não serviam mais nela. Bernadete se deliciava. Sorria e cantava: “E a gente pega na viola que ponteia, e a canção é a lua cheia a nos nascer do coração!”. Não conseguia fazer amigos. Não podia sair. Quando saia era para ir à padaria ou ao armazém.

            Bernadete nunca esqueceu o semblante de sua mãe. Dormia em um quartinho no fundo do quintal que ela arrumou ao seu modo. Gostava quando estava lá, pois fez amizade com um canário Belga amarelo que vinha sempre cantar para ela na janela. Não tinha cortinas. Não podia ter. Mas tinha uns vasinhos com flores silvestres que ela regava diariamente. Agora não era mais só o canário amarelo. Um sabiá e um Pássaro Preto se juntou aos outros. Eles sempre pela manhã acordavam Bernadete com seu cantar na janela e ela contente corria para saudá-los.

             Bernadete levantava cedo. Muito. Tinha de fazer o café, ir à padaria, e voltar à velha rotina da casa. De uns tempos para cá Dona Heloisa a deixava passear até a praça aos domingos à tarde. Gostava muito. Via gente, meninos brincando e ela sorria para eles com sua alegria infantil, pois a pureza de Bernadete persistiu por todos os anos da sua vida. Ela olhava as meninas a brincarem no pula-pula, no balanço e a descer e subir o escorregador. Quando todos sorriam ela cantava. Nunca deixou de cantar a canção que sua mãe ensinou para ela. “Não há, oh gente...”.

             Bernadete quando fez vinte anos ainda continuava a mesma. Sempre alegre, sempre fazendo tudo naquela casa. Agora cozinhava também, pois Dona Heloisa teve um problema nas pernas e não podia andar. Ficava em uma cadeira de rodas azucrinando o dia inteiro sua vida. Bernadete ficou mais encorpada. Seus seios cresceram. Suas pernas apesar de uma mais curta ficaram mais grossas. Seu cabelo ainda crespos cortados curtos lhe davam um aspecto faceiro e até sensual. Mas ela não sabia o que era isto. Um dia ao varrer o corredor ouviu gritos e correu para ajudar. Mas era no quarto de Dona Heloisa. Ela gemia e pedia mais. Bernadete não entendeu nada. O que seria? Um dia ao sair da igreja Sentou em um banquinho onde varias meninas conversavam. Falaram de sexo, de penetração, mas penetrar o que? Nunca tinha visto um membro de um homem. Ouvia falar, mas não sabia como era. Não era um assunto que ela queria pensar. Todas as noites ajoelhava próximo a sua cama e agradecia a Jesus por tudo que estavam dando a ela. Não passava fome, tinha um quartinho só dela e tinha os passarinhos que eram seus amigos. Ela quando deitava sentia os lábios de sua mãe a lhe beijar. Ela vinha todas as noites. Bernadete sabia. Dormia sorrindo!

              Um dia Lourenço chegou da cidade grande com uma moça linda. Faceira. Loira também e os cabelos compridos iam até sua cintura. – Meus pais, esta é Edna, minha esposa. Sua mãe levou um susto e seu pai quase caiu da cadeira. Bernadete sorriu para ela como a dizer – Seja bem vinda moça linda! Edna perguntou quem era Bernadete – Lourenço respondeu que não era ninguém. Uma empregada mal agradecida, pois deram tudo para ela e fazia tudo errado! Bernadete abaixou a cabeça e sem perceber começou a cantar baixinho – “A lua nasce por detrás das verdes matas...” – O que é isto Edna perguntou. Nada, ela é louca. Cuidado com ela.

               Um ano depois Lourenço deixava Edna sozinha em casa e ia para a Rua do Quebra Cachaça. Bernadete não sabia o que era isto, mas achou que não era boa coisa. Voltava tarde, bêbado e chingando todo mundo. Um dia chegou calado e foi até o quarto de Bernadete. Entrou e deitou com ela em sua caminha estreita. Bernadete assustou e ia gritar quando ele disse – Se gritar vou contar a todo mundo que você me chamou. E vão escorraçá-la daqui para fora. Rasgou sua camisola. Ela sentiu a dor da penetração. Foi forte. Ele logo parou, pois a molhou toda por dentro. Bernadete chorava baixinho. De dor e de vergonha. Lourenço arrumou as calças e foi embora. Por vários dias nem olhava para ela.

               Edna suspeitava que Lourenço tivesse feito “mal” a Bernadete. A maneira como ele procedia em casa junto a ela não dava para esconder. Notou que Bernadete quase não ria mais. Andava sempre triste, de cabeça baixa. Não demorou e a barriga de Bernadete começou a crescer. Dona Heloisa não perdoou. Queria a todo custo mandar ela embora. Uma “puta” isto sim dizia. Faltou com o respeito! Meu filho casado e ela nem pensou nisto? E minha filha o que vai dizer? Bernadete sempre ficava de cabeça baixa. Os olhos cheios de lágrimas, mas ela cantava sem ninguém ouvir – “E a gente pega na viola que ponteia...”.  Seu Nivaldo não deixou. E você nesta cadeira de rodas vai fazer tudo?

              Quando o filho de Bernadete nasceu, foi em outubro. À noite. Ninguém ajudou. Edna ouviu os gritos e correu a ajudar. O menino já havia nascido. Quando pegou o menino sentiu que era lindo! Não falou nada com ninguém. O levou para seu quarto e disse a Lourenço que ele seria filho dela, pois ele era o pai. Um susto. Lourenço não falou nada. Bernadete no outro dia tentou levantar. Lavou-se. Os pássaros cantavam para ela na janela apesar de sua dor e tristeza. Sentiu que toda a noite sua mãe estava lá. Sorrindo para ela e dizendo – Calma minha filha, sua recompensa não tarda. Bernadete com dificuldade voltou ao trabalho. Edna a chamou em um canto e disse que ia tomar conta do filho dela, bastava ela amamentar. Daria tudo a ele. Não iria faltar nada. – Você nunca teria condições de cria-lo! Bernadete chorou. Chorou muito, mas mesmo assim conseguiu cantar – “Este luar cá da cidade tão escuro, não tem aquela saudade do luar do meu sertão!”.

              Passaram-se os anos. Antônio Carlos cresceu. Bernadete o olhava com amor e carinho e sorria. Ele não gostava dela, sempre lhe virava as costas. Seu filho não sabia que ela era sua mãe. Nunca o beijou, nunca o abraçou. Viveu junto a ele até quando fez sessenta anos. Ele rapagão, bonito, forte, se formou engenheiro. Vinha em casa, trazia presentes para todo mundo. Para Bernadete não. Ela o olhava orgulhosa, seus olhos brilhavam. Lágrimas se faziam cair. Ela fazia tudo que ele pedia. Mas ele nem sequer lhe sorria. Mesmo assim ela cantava de alegria – “A canção e a lua cheia a nascer no coração!”.

             Um dia Bernadete começou a tossir, da tosse viu que sangrava. Tentou esconder. Dona Heloisa bem velha, mais de oitenta anos disse – Como sua mãe. Tuberculosa! Tire ela desta casa! Internem ela em um sanatório! Seu Nivaldo não deixou. Afinal Bernadete dedicou uma vida inteira a família, nunca teve nada, e agora por ela para fora? Dois meses depois, em uma manhã de sol brilhante, Bernadete ao acordar viu os passarinhos cantarem em sua janela, não era só os três, eram centenas. Foi uma surpresa. Ela nunca viu um dia tão bonito, ensolarado, lindas nuvens no horizonte. Parecia que estava em um enorme jardim e o perfume das flores era trazidos até sua janela por aragens refrescantes vinda do céu. A família veio correndo para ver o que era. Uma multidão de passarinhos a cantar próximo a janela de Bernadete. Entraram e a viram deitada inerte. Um fio de sangue escorria em sua boca. Estava morta.

              Bernadete os viu entrar tentou sorrir, ia pedir desculpas. Mas viu seu corpo na cama. Ia falar com eles, mas sua mãe chegou. Estava toda vestida de branco. Atrás uma luz brilhante com vários anjos a cantar e os passarinhos cantaram também. O que é isto perguntou Dona Heloisa, assombração? Saiu rápido em sua cadeira de rodas. Seu Nivaldo estava boquiaberto. Larita que estava visitando não suportou a forte luz que vinha da janela. Lourenço tremia e Edna sorria. Antônio Carlos não estava em casa. Tinha viajado para o “estrangeiro”.

              Os vizinhos acorreram à casa dos Nivaldos. Eram milhares de passarinhos. Nunca se viu tanto e todos voando em volta da casa de Dona Heloisa. Cantavam e faziam uma enorme algazarra. Bernadete ficou em dúvida. Ficar ali ou ir com sua mãe? Sentiu tristeza em deixar aquela família que apesar de tudo ela os amava. Sua mãe sorria e dizia, - vem minha filha, eles ficaram amparados apesar do que fizeram a você. Todos passamos por isto. Eles irão um dia também passar as dificuldades da vida. E Bernadete seguiu sua mãe. A luz forte e brilhante as acompanhou enquanto desapareciam no horizonte. A passarada foi atrás e nunca mais voltaram naquela casa.
             Bernadete ficou deslumbrada com a cidade onde foi morar. Era linda, toda colorida e cheia de flores. Não sabia que tinha tanta gente que a conhecia. Sempre diziam – Olá Bernadete. Seja bem vinda! Esperamos muito este dia. Que Jesus esteja com você! E todos sempre sorrindo. Eram centenas que iam visitá-la em sua casinha branca cheia de rosas perfumadas de todas as cores. Eles sorriam para ela, a abraçavam e beijavam carinhosamente. Ela sentiu ali que o amor era o elixir da vida que sustentava a cidade. Sentia que agora pertencia a uma família, uma família enorme, linda, a família de Jesus. Ele havia atendido seu pedido e as suas preces. Viu que sua tosse não existia mais. Viu que também se vestia de branco e adorava. E as tardes, ela e sua mãe sentavam na varanda e cantavam. Não se sabe como, uma viola invisível dedilhava a canção e os passarinhos seus amigos faziam um coro tão lindo que a transformavam na mais bela canção do mundo. Era Maravilhoso. Impossível descrever e tão incrível de ouvir que toda a cidade do além parava para escutar a Canção de Bernadete:
Não há, oh gente  

oh não, Luar  
Como esse do sertão.

Oh que saudade  

Do luar da minha terra  
Lá na serra branquejando  
folhas secas pelo chão

Este luar cá da cidade  

Tão escuro  
Não tem aquela saudade  
Do luar lá do sertão

Não há, oh gente...
Se a lua nasce  

Por detrás da verde mata  
Mais parece um sol de prata  
Prateando a solidão

E a gente pega  

Na viola que ponteia  
E a canção  
É a lua cheia  
A nos nascer do coração