Um beijo
Foste o beijo melhor da minha vida,
ou talvez o pior... Glória e tormento,
contigo à luz subi do firmamento,
contigo fui pela infernal descida!
Morreste, e o meu desejo não te olvida:
queimas-me o sangue, enches-me o pensamento,
e do teu gosto amargo me alimento,
e rolo-te na boca malferida.
Beijo extremo, meu prêmio e meu castigo,
batismo e extrema-unção, naquele instante
por que, feliz, eu não morri contigo?
Sinto-me o ardor, e o crepitar te escuto,
beijo divino! E anseio delirante,
na perpétua saudade de um minuto...
Foste o beijo melhor da minha vida,
ou talvez o pior... Glória e tormento,
contigo à luz subi do firmamento,
contigo fui pela infernal descida!
Morreste, e o meu desejo não te olvida:
queimas-me o sangue, enches-me o pensamento,
e do teu gosto amargo me alimento,
e rolo-te na boca malferida.
Beijo extremo, meu prêmio e meu castigo,
batismo e extrema-unção, naquele instante
por que, feliz, eu não morri contigo?
Sinto-me o ardor, e o crepitar te escuto,
beijo divino! E anseio delirante,
na perpétua saudade de um minuto...
Vinte e cinco segundos para morrer!
Tempo atual
Quinta feira – 15 horas
- Você tem vinte e cinco segundos para rezar seu filho da puta. Vou
matar você como se mata um cão! Não espere piedade. Você me tirou Letícia nada
mais me resta. Vai se encontrar com o diabo nos meios dos infernos! – Eu estava
branco, lívido, pálido e tremia. Que situação! Nunca pensei em morrer assim.
Tentei falar e não conseguia, só balbuciava. O que fiz? Não podia acreditar no
que estava acontecendo. Todos estavam espantados. Assim como eu estavam no
lugar errado na hora errada!
Impossível descrever meu pavor. Tudo parecia um grande engano, mas era
real. Meu nome é Roberto Silviano. Sou um simples professor de história. Não
sei o que é violência e nem tampouco estive com ela algum dia. Como fui parar
ali era uma situação inusitada. Melhor é começar contando tudo. Incrível como a
vida nos reserva surpresas assim. Dizem que na vida temos muitas surpresas.
Boas, ruins e inesperadas. Temos de estar preparados para reagir a cada uma
delas. Até me disseram que não devemos ter medo de viver e ser feliz. Mas eu
não estava vendo assim.
Quarta feira – 22 horas – um dia antes
Tinha rodado por toda a cidade não só nos melhores colégios, mas também
aqueles mais humildes. Cinco meses desempregado. Achei que era um bom
professor. Sempre a mesma desculpa. Volte no fim do ano, quem sabe teremos
alguma desistência de professores e poderemos admitir você? Educadamente é
claro. Minha família era muito unida. Casei com Karina há dez anos atrás. Deus
nos abençoou com Antero e Maria Eugenia. Um casal de filhos lindos e que agora
se aproximando dos oito e nove anos faziam de nossa família o lado extremo da
felicidade.
Dizem que a vida só pode ser compreendida olhando-se para trás; mas só
pode ser vivida, olhando-se para frente. Nunca tive problemas com minha
atividade profissional. Provi minha família de um lar humilde sim, mas cheio de
alegrias e felicidade. Era professor de um grande colégio que para surpresa de
muitos fechou as portas e me vi na rua. Como não estava conseguindo nenhuma
oportunidade, li que uma universidade no interior, por sinal muito bem quista
na sua área, estava oferecendo vagas para professores que tivessem formação
acadêmica ou pedagógica.
Karina concordou e até fez planos se fosse admitido. Ela achava que uma
cidade menor teria uma vida mais simples, mas bem mais calma e pacata. Peguei o
ônibus das 22 horas, e deveria chegar à cidade por volta de 07 da manhã. Uma
viagem calma deu até para tirar bons cochilos. Notei com alegria que a cidade
tinha aquele aspecto de interior, e era bem provida de arvores com um belo rio
cortando de ponta a ponta vários bairros.
Quinta feira – 07 horas – o dia fatídico
A rodoviária era pequena e logo que desci peguei minha maleta e procurei
alguém para me informar sobre a universidade. Uma moça próxima a uma banca de
jornal me fazia sinais para aproximar. Era uma linda morena de olhos castanhos,
grandes, um lindo cabelo negro amarrado em rabo do cavalo e ela sorria para
mim. Deus do céu! Ela era linda demais. Fui ao seu encontro, primeiro pela sua
beleza segundo porque achei que ela queria algum de mim e não era eu, pois não
era bonito, e até tinha o corpo meio encurvado para os meus 42 anos.
Pediu desculpa e se apresentou como Cecília. Queria saber se poderia acompanhá-la
até o Banco da cidade, pois iria retirar uma grande quantia em dinheiro e tinha
medo e de ir lá só. Poderia ter aconselhado a pedir ajuda a um policial, mas
não o fiz. Tinha duvidas sobre sua historia se era verídica. Eu estava absorto
com sua imagem, pois apesar de amar profundamente Karina, não podia deixar de
aproveitar alguns minutos ao lado dela. Não pensem mal de mim. Nunca iria trair
Karina. Mas como era cedo, fomos até um restaurante/bar que estava aberto e
tomamos um café acompanhado de pães e biscoitos.
Quinta feira – 09 horas – o dia fatídico
Se fosse um bom observador, o que não sou, poderia ter visto do outro
lado da rua um pequeno Fiat com três pessoas dentro, a observar nosso colóquio
amigo no restaurante. Conversamos amenidades, e eu não sei por que, estava
fascinado com aquela mulher. Não deixava de olhar dentro dos seus olhos
grandes, seus lábios grossos e vermelhos. Senti-me culpado por Karina. Eu ali
com uma bela mulher, agora desejando ela ardentemente e ela a labutar e dar
assistência aos filhos que lá ficaram.
Cecília falava naturalmente. Quando ria, sua boca estremecia para a
direita e seus lindos dentes apareciam fazendo um trejeito irresistível. Não
sei se falou a verdade ou se contou pequenas nuances de sua vida de maneira
ficcional só para me enganar. Eu não tinha experiência com mulheres. Nunca
tive. Cecília em poucas horas estava me conquistando fazendo de mim um escravo
de tudo que ela desejasse. Agora ali, eu não olhava para trás. Este estava
sendo o dia mais feliz de minha vida. Vivia ele como se fosse o único, e
especial, com uma pessoa especial.
Quinta feira – 10 horas – o dia fatídico
Saímos do restaurante e nos dirigimos ao banco. Sua historia do dinheiro
me deixou intrigado, mas sua beleza me enfeitiçou. Entramos e ela procurou o
gerente. Não sei o que conversaram, mas o gerente saiu com ela branco como uma
folha de papel. Ela me olhou e sorriu. Aproximou de mim e disse – Muito
obrigado, não preciso mais de você e me deu um beijo mordido. Um beijo que
nunca tive na vida. Foi realmente incrível. Fiquei estático com aquele beijo.
Logo vi que a trama que me envolveram não estava de maneira nenhuma preparado
para ela.
Os três bandidos que estavam no Fiat entraram armados até os dentes.
Mandaram todos deitar e um cliente que demorou levou uma coronhada no ombro
caindo como uma pedra no chão. Eu não deitei e o que parecia ser o chefão, um
barbudo, se aproximou e me disse baixinho.
– Pela sua ajuda vais levar uma parte, agora não se faça de bobo e deite
como todo mundo. Eu tremia. Não deitei e ele me olhou de novo e me deu uma
rasteira. Mesmo assim não cai. Dei nele um tremendo soco no rosto. Nossa! Nunca
fiz isso! Um dos bandidos atirou em mim e Cecília entrou na frente recebendo a
bala que a mim era destinada.
Quinta feira – 11 horas – o dia fatídico
Virou uma balburdia o banco. Gente gritando, outros tentando correr para
a porta e eu boquiaberto com tudo. Não sabia como reagir. Ouvimos lá fora a sirene
do carro da policia. O banco estava cercado. O barbudo que parecia ser o chefe
e dava ordens a todos inclusive a mim se aproximou de Cecília. O tiro tinha
entrado no ombro e sangrava muito, mas ela ainda estava viva. Poderia ter
sobrevivido, mas o barbudo não quis que ninguém a socorresse. Porque não sei.
Ela estava de olhos abertos, deitada em uma poltrona e fez um sinal com os
olhos para me aproximar.
Fernando Pessoa dizia que
o próprio viver é morrer. Não temos um dia a mais na nossa vida que não
tenhamos nisso, um dia a menos nela. Foi uma carnificina. Os três ouviram os
policiais para se renderem. Fizeram tudo ao contrário. Disseram alto que a cada
cinco minutos matariam um se a policia não saísse de frente do banco. Policia
do interior, não preparada para esse tipo de ação. Não saíram. Deram um tiro na
cabeça do gerente. Cinco minutos depois outro no pescoço de uma moça jovem.
Quinta feira – 13 horas – o dia fatídico
Cecília queria falar e
não conseguia. Sua boca enchia de sangue. Fui até ela mesmo com o barbudo
gritando para ficar onde estava. Ela baixinho pedia perdão, não queria isso,
não era assim que tinham planejado. O plano falhou. Eu teria outro papel. Não
sei que papel seria, pois ela morreu em meus braços. O barbudo me deu uma
tremenda coronhada com o fuzil que portava. Cai esparramado no chão próximo a
um vigilante desmaiado e não desmaiei. Deu para pegar seu 38. Nem sei o que
pensei. Não sabia atirar. Nunca dei um tiro na vida.
Meu primeiro tiro pegou
no peito do magrinho que não falava e ele caiu duro no chão. Corri atrás do
balcão. Uma saraiva de balas pelos dois que lutavam ainda para escapar. Olhei e
vi que só tinha duas balas. Mirei no cara do jaleco preto, ele também quase não
falou, mas matou três pessoas no banco a sangue frio. Ele veio na minha direção
rindo, debochando e acertei um tiro em sua boca. Ele caiu estrebuchando feito
um porco capado.
Quinta feira – 14 horas – o dia fatídico
Ouve um silencio macabro
no banco. A policia não se mexia. Não queriam entrar. Receberam ordens da
capital. Um major de uma cidade próxima chegaria logo para negociar. Eu fiquei
calado e quieto. Só uma bala na arma. O barbudo começou a cantar baixinho e
depois cantava alto. Louco, ele é louco pensei. Um homem de idade levantou e
saiu correndo em direção à porta. O barbudo o derrubou com um tiro.
Fiquei ali sem saber o que fazer. O barbudo não se aproximou. Não sabia
quantas balas tinha e eu achava que ele se amedrontou com meus tiros certeiros.
Não sei por que fiz aquilo. Um simples professor. Nunca tinha usado da
violência. Nunca dei um tiro em minha vida. Agora não tremia mais. Fiquei
preocupado, pois achava que estava gostando de tudo. Deus meu! Isto não pode
acontecer. Uma saraiva de balas entrou pela janela. Fui atingindo no braço e
minha arma caiu. Os policiais resolveram atirar não sei por quê.
Quinta
feira – 15 horas
- Você tem vinte e cinco segundos para rezar seu filho da puta. Vou
matar você como se mata um cão! Não espere piedade. Você me tirou Letícia e
matou meus amigos. Nada mais me resta. Vai se encontrar com o diabo nos meios
dos infernos! – Ele me pegou desprevenido. Olhava para a porta e ele veio por
trás. Não reagi, não dava mais. Só vi a policia de choque invadindo o salão do
banco. Ele atirou em mim e o tiro pegou no outro braço. Caiu para trás com
vários tiros dados pelos policiais. Acho que morreu na hora.
Levaram-me para o hospital da
cidade. Não tinham condições de me tratar. Duas balas em cada braço. Fui para
outra próxima. Fiquei lá por 15 dias. Minha esposa me acompanhou. Quando soube
veio correndo. Os jornais me tratavam como o herói que salvou muitos reféns.
Não salvei ninguém. Nem sei até hoje porque fiz aquilo. Mas me fizeram um herói
que nunca existiu. Não adiantava explicar.
Segunda feira – 07 horas – dois meses depois do
acontecido.
Meu primeiro dia de
faculdade. Fui aceito como professor e todos me olhavam admirados. Não gostava
disto. Mas sabia que era um fato e este fato iria desaparecer com o tempo.
Karina estava contente com a nova casa. Simples mas uma morada cheia de amor.
Meus filhos adoraram a cidade. Fui homenageado por diversos clubes da cidade. O
Rotary e o Lyons Clube. O prefeito me deu uma medalha que disse ser a mais alta
condecoração já dada a alguém. Não me sentia bem com todas aquelas homenagens.
Mas a vida é assim mesmo.
Diziam que na vida, nada se resolve,
tudo continua. Permanecemos na incerteza e chegamos ao fim sem sabermos com o
que podemos contar. Nunca mais esqueci Cecília. As pessoas entram em nossa vida
por acaso, mas não é por acaso que elas permanecem. Karina nunca soube da minha
paixão momentânea por ela. Nunca contei. Se nossas vidas só pode ser
compreendida olhando-se para trás, que assim seja. Mas acredito que só pode ser
vivida olhando-se para frente.
Sei que os anos irão passar como o vento passa e se vai. Diferente do
vento não esqueci. Tudo que aconteceu permanece vivo na minha mente. Amo Karina
e não esqueço Cecília. Quem sabe as voltas do mundo me farão ver o outro lado
que ainda não tinha visto. A violência nunca existiu em mim até o dia que ela
apareceu. O deus da guerra e da violência aparece sempre em atitude de repouso.
Não sei quanto tempo ficarei nesta inércia do passado e do presente. Mas se a
vida quis assim, quem será eu para mudá-la?
CANÇÃO DE OUTONO
Perdoa-me, folha seca,
não posso cuidar de ti.
Vim para amar neste mundo,
e até do amor me perdi.
De que serviu tecer flores
pelas areias do chão,
se havia gente dormindo
sobre o próprio coração?
E não pude levantá-la!
Choro pelo que não fiz.
E pela minha fraqueza
é que sou triste e infeliz.
Perdoa-me, folha seca,
não posso cuidar de ti.
Vim para amar neste mundo,
e até do amor me perdi.
De que serviu tecer flores
pelas areias do chão,
se havia gente dormindo
sobre o próprio coração?
E não pude levantá-la!
Choro pelo que não fiz.
E pela minha fraqueza
é que sou triste e infeliz.
Perdoa-me, folha seca!
Meus olhos sem força estão
velando e rogando àqueles
que não se levantarão...
Tu és a folha de outono
voante pelo jardim.
Deixo-te a minha saudade
- a melhor parte de mim.
Certa de que tudo é vão.
Que tudo é menos que o vento,
menos que as folhas do chão...
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