Canção do Adeus
Digo-te adeus e talvez
Ainda te queira
Não sei se vou te esquecer,
Mas te digo adeus
Não sei se você me quis
Não sei se eu te quis
Ou talvez a gente se quis
Demais os dois.
Este meu carinho,
Apaixonado e louco.
Eu o semeei na minha alma
Para te querer a ti.
Não sei se te amei muito,
Não sei se te amei pouco.
O que eu sim sei é que nunca
Voltarei a amar assim.
Fico com teu sorriso,
Gravado nas minhas lembranças
Y o coração me diz,
Que não vou te esquecer.
Mas ao ficar sozinho,
Sabendo que perco você
Talvez comece a te amar,
Como jamais te amei.
Digo-te adeus e talvez,
Nesta despedida.
Meu sonho mais bonito,
Morra dentro de mim,
Mas te digo adeus,
Para toda a vida.
Ainda que toda a vida,
Continue pensando em você,
Continue pensando em você,
Continue pensando em você.
(Horacio Guarany – José Angel Buesa)
A canção do adeus
Há dias eu estava assim. Não me lembrava do meu
passado. Não sabia de onde tinha vindo. Lembrar para que? Estava bebendo
sempre, achava que não tinha parado nem um minuto. Eu devia ser rico, pois
sempre tinha uns tostões para pagar a bebida. Sempre ficava ali naquela cadeira
do canto do bar do Joel. Não olhava para ninguém. Não tinha motivo. Conhecia o
Joel, o único, o barman que se tornou meu amigo. Ele era prestativo e educado.
Não perguntava o que houve, não dava conselhos e não ficava encarando. Os
outros bares que já tinha percorrido não.
As
madrugadas, Joel me colocava em um taxi e dava o endereço. Joel sabia. Não
entendia como o porteiro do prédio me levava até meu apartamento. Abria a
porta, me colocava na cama, tirava meus sapatos e ia embora. Devo ter sido boa
pessoa. Todos eram gentis comigo. Acordava ainda de madrugada. Suando. Nem me
lembrava do que sonhei, mas tinha sido um pesadelo. Tinha sido sempre assim.
Levantava e olhava a mesinha. Lá estava meu uísque. Não podia faltar. Nem sabia
quem o comprava.
Já
começava o dia bebendo. Sentia uma fraqueza no corpo, um vazio, como se fosse
explodir para dentro. Devia haver um motivo. Tinha de haver. Mas minha mente se
recusava a voltar ao passado. Eu tinha passado? Claro que sim. Todos têm.
Parece a piada que dizia assim – “Ontem eu bebi para esquecer. Bebi tanto que
esqueci. Hoje estou bebendo para lembrar”. Disso eu me lembro. Risos. Lembro
até das outras piadinhas:
- Uma mulher me levou a beber... E eu nem agradeci!
- Aos que bebem para esquecer, favor pagar adiantado!
- Quem bebe morre, quem não bebe morre também, então vamos
beber!
Eu
lembrava, mas não ria. Não achava mais graça. Não achava graça de nada.
Preferia estar morto. Acho que era um zumbi, a andar por aí como um morto vivo.
Sem nada para fazer a não ser beber. Vesti uma roupa limpa. Uma camisa branca
de mangas compridas, uma calça cinza esporte, um paletó também cinza esporte e
achei um Mocassim marrom que poderia calçar sem meia. Custei a achar a porta da sala. Nem fechei.
Sabia que alguém a fecharia. Na porta do prédio todos me chamavam de doutor.
Doutor? Doutor de que? Não respondia. Não sabia o que dizer.
Olhei
para o céu, o sol estava se pondo. Tão tarde assim? Achei que tinha dormido
pouco. Dormi o dia todo. Meu estomago pedia um bife. Um bife ou um drink? Acho
melhor um drink primeiro. Já conhecia todos os bares e restaurantes ali perto.
Não gostava de nenhum deles. Sempre me aconselhando. Dizendo o que tinha de
fazer. Preferia o bar do Joel. Lá em me escondia em meu próprio corpo e nem
sabia quem estava lá. Peguei um taxi. Só disse bar do Joel. Ele sabia onde era.
Parei
na porta. Desci, uma jovem linda me cumprimentou. Boa tarde Doutor Marcio
Basseto. Ela sabia meu nome? Chamei-a, ela sorriu e se aproximou. Você me
conhece? Quem não conhece o senhor Doutor Marcio Basseto? O maior cientista vivo
do país. Riu e se foi. Meu nome é Marcio? Boa bisca não devo ter sido para não me
lembrar de nada. E ainda vivo? Estou morto e só ela não sabia. Risos. Entrei no
bar do Joel. Foi para minha cadeira e minha mesa. Joel colocou uma garrafa na
mesa. Um legítimo Buchanans 18 anos. Não era barato. Mas era o meu preferido.
Chegava
ao anoitecer e quando Joel ia fechar eu saia. Sempre o mesmo taxi. O mesmo
porteiro, o mesmo apartamento, a mesma cama e os pesadelos. Uma noite no bar do
Joel, alguém sentou em minha frente. Doutor Marcio Basseto, permite-me.
Permite-me? Já sentou “cacete” falei. Nem olhei, não precisava, varias vezes
alguém aparecia para conversar e eu não queria. Conversar o que? Não sabia
nada, não me lembrava de nada. Não conhecia ninguém. – Estou aqui a pedido de
dona Eugênia Basseto. Olhei para ele. Na casa de seus 55 anos. Cabelos negros
grandes com mechas brancas. Um bigode já ficando também branco. Todo o tipo de
um advogado.
Doutor
Marcio eu estou aqui em nome da Dona Eugenia Basseto. Levantei. Olhei para ele
e sai do bar. Não estava a fim de conversar. Não estava a fim de lembrar. Não
estava a fim de nada. Cacete! Ele devia saber. Não foi a primeira vez que me
procurou. Se eu bebia era para esquecer e não ficar conversando com advogados
idiotas. Não queria lembrar-se do meu passado. Pequei o primeiro taxi. Parou,
entrei, para onde Doutor Marcio? Era sempre assim, eu era um “merda”. Não
poderia me esconder nunca. Me leve ao inferno, por favor! Quem sabe o diabo me
dá sossego?
Ele
sabia. Levava-me ao bar do Joel de novo. Dava umas duas voltas e voltava ao
ponto de partida. Minha garrafa de Buchanans estava lá. Joel sabia que eu ia
voltar. Um dia desmaiei na mesa. Joel correu e chamou uma ambulância. Só
acordei com o corpo em pandarecos num apartamento de um hospital. Em volta duas
enfermeiras e um médico. Gritei – Meu uísque onde está? Ninguém respondeu.
Tentei levantar não deu. Fios e buracos no corpo para todo lado. Chorei.
Chorava querendo meu drink. Eles não diziam nada. Desmaiei. Acho que me
sedaram.
Acordei calmo. Olhei o teto, não era do hospital. Um azul profundo. Não
era teto ou era? Eu via o céu. Mas estava em uma cama. Meu corpo não doía. Não
tinha fios ligados ao meu corpo. Olhei de lado e não vi ninguém. Muitas
árvores. Muitas flores, bem perto uma bica de água doce corria e cantava sons
intermitentes como se fosse uma obra de Bach. Johann Sebastian Bach. O meu
preferido. Não sabia qual sonata, mas uns sabiás pousaram em uma árvore
próxima. Canários rajados, amarelos e azuis faziam acrobacias no ar.
Onde
estava? Uma nuvem branca se aproximava. Era ela. Tinha certeza. Maria Inês se
aproximava com aquele seu sorriso que nunca esqueci. Ou já tinha esquecido?
Junto a ela de mãos dadas, Darlene de um lado e Mauricio de outro. Todos
sorriso se aproximando. Bach estava chegando ao auge com sua melodia. Minha
cabeça começou a doer. Gritei alto. Não! Não deixe que ela se vá de novo!
Acordei suando. Gemendo. Médicos e
enfermeiras do meu lado. Chega! Pelo amor de Deus! Não me cedem mais. Não estou
agüentando! Eles não diziam nada. Apenas sorriam. Um sorriso enigmático. Porque
não tiram minha vida? Matem-me ou me deixem ir para o meu lar. A mesa do bar do
Joel. Lá pelo menos ele me entende. Ninguem dizia nada. Mamãe estava ali. Assim
ela dizia. Claro lembrava que Já tinha dito que desaparecesse da minha vida.
Nunca me ajudou. Sempre me odiou por ter casado com Maria Inês. Agora ficava
sempre ao meu lado como uma ave de mau agouro.
Na
minha mente, tocava harmoniosamente as Sonatas para flauta de Bach. Mas meu
estomago pedia meu uísque. Malditos. Tragam meu uísque! Mas ninguém me atendia.
Médicos e enfermeiras ali, feito idiotas sorrindo e me sedando. Dormi de novo.
Uma sensação de alegria de novo. Lá estava Maria Inês correndo para mim, ao seu
lado Darlene e Mauricio. A música aumentava o som. Pedia a Bach para não tocar
tão alto as sonatas para flautas. Minha mente começava a gritar, o suor
chegava. Tudo desaparecia. Meu Deus! Acho que estou louco. Uma bebida pelo amor
de Deus! Pelo amor de Deus!
Naquele dia quanto acordei não havia médicos. Ninguém no quarto.
Levantei cambaleando. Muitos fios. Arranquei todos. Estava amarrado com uma
bata azul clara. A bunda de fora. Por baixo nada. Olhei a janela, três andares.
Dava para tentar descer. Tinha saliências entre um andar e outro. Consegui
chegar ao primeiro depois caí no vácuo. Não perdi os sentidos, mas a perna
esquerda doía muito. Mesmo assim saí mancando. Peguei um taxi, nem precisei
falar. Levou-me ao meu edifício. Zezé o porteiro abriu a porta e me conduziu ao
apartamento.
Lá
estava ela, linda, como a amava aquela garrafa. Corri até ela. Coloquei o
liquido no copo. Não sei por que nunca bebi no gargalo. Talvez fosse um costume
do passado. Não sabia. Sentei em uma cadeira. Fechei os olhos. Enchi o copo
novamente. Estava melhorando. Sabia o que fazer. Um banho! Isso! Tinha mais de
duas semanas que não tomava um. Escolhi uma camisa azul clara. Mangas
compridas. Uma calça azul de mescla. Um paletó marrom esporte. O Mocassim de
sempre.
Pela
primeira vez resolvi ir ao bar do Joel a pé. Estava um ar gostoso. Já tinha
bebido quatro drinks. Notei que todos que me olhavam me cumprimentavam. Devia
ser muito conhecido ou tinha muitas dívidas. Meu estomago doía de fome. Nunca
pensava em comer só beber. Vi na esquina um carrinho de cachorro quente. Quanto
tempo não comia um? Acho que muitos e muitos anos. Ainda não sabia o motivo,
mas agora ia tirar o atraso. Sentei no meio fio, comecei a comer um. Pela
primeira vez senti o gosto.
Alguém
sentou ao meu lado. Um mendigo. Sujo. Imundo. Um cheiro ruim. Não importei.
Pedi ao moço do cachorro quente que fizesse um para ele. Ficamos ali os dois
sem falar nada. Comemos quatro cachorros quentes. Levantei, tirei do bolso duas
notas de cem, dei para o mendigo. Paguei com uma de cinqüenta ao moço do
cachorro quente. Fique com o troco eu disse. Se tinha tanto dinheiro no bolso
tinha que ser rico.
Já estava
escurecendo quando cheguei ao bar do Joel. Alguém na minha mesa. Não gostei.
Joel me disse que a moça queria falar comigo. Não iria embora enquanto eu não
atendesse. Merda! Merda! Fui até lá. – Diga logo, essa mesa é minha e não gosto
de convidados. Ela levantou a cabeça, sorriu. Um sorriso de Mona Lisa. Estava
gostando daquele sorriso. Não podia. Tinha um passado que não lembrava e que me
proibia.
Sentei. Ela me olhou dentro dos
olhos. Tenho uma proposta disse. Obrigado, eu mesmo compro minha bebida. E não
gosto de prostitutas. Nada disso completou – Minha empresa tem um bom salário a
lhe oferecer se resolver voltar a trabalhar e largar a bebida. Olhei para ela
profundamente. Proposta? A única proposta que quero fazer é com Deus se ele me
aceitar quando partir desta para melhor. Ela completou - Vou lhe deixar um
cartão. Qualquer coisa me telefone.
Levantou-se
e saiu rebolando. Pela primeira vez assim achava, senti um pequeno calor no
corpo. Logo Joel trouxe meu uísque. Beberiquei devagar o primeiro drink. Não
estava entendendo. Só fazia isso quando passava dos dez. Por mais de uma hora
não sorvi ele todo. Estava pensando. Mas juro que não sabia em que. Minha mente
se fechava quando tentava lembrar. Agora lembrava mais amiúde do meu pesadelo.
No inicio o sonho mais lindo que um homem podia ter depois o seu pior pesadelo.
Pedi ao
Joel colocar Bach. As Sonatas para Flautas. Não sei por que a chamava da Canção
do Adeus. Tinha de haver um motivo. Não sabia. Não lembrava. Que merda meu
Deus! Desculpe Deus! Foi sem querer. Fechei os olhos. Lá estava ela, linda,
sorrindo, flutuando em nuvens brancas levadas pelo vento. Juntos Darlene e
Mauricio. Mas que diabos eram isso? Quem eram eles? Abria os olhos. Joel atrás
do balcão, alguns outros bebendo nas mesas subseqüentes. Um reclamou da Sonata
de Bach. Joel o mandou para o inferno. Ri baixinho.
Hora de
fechar Doutor. Joel agora me chamava de Doutor.
Levou-me até o taxi. Este me deixou na porta do meu prédio. Não vi o
Zezé. Era outro porteiro. Onde está o Zezé? - Foi embora. Pediu demissão.
Voltou para sua terra no norte. Dizia que lá se vive aqui se vegeta. Pela
primeira vez ninguém me levou ao meu apartamento. Subi as escadas com
dificuldade. Não quis ir de elevador. Achava que desta vez bebi menos. Precisava
me exercitar. No segundo andar senti uma forte dor no peito.
Acordei
de novo no tal hospital. Lá estavam duas enfermeiras e o médico. Em pé, feito
três panacas. Olhando-me e sorrindo. Não diziam nada. Ao lado minha mãe. Dona
Eugenia Basseto. Mãe? Que mãe? Quando conseguia me lembrar nunca pensava em
amor, só em ódio. – Ela dizia você vai morrer assim, Marcio Basseto. Eu sei que
é o que você quer. Mas não se foge assim dos problemas. Senti uma dor aguda de
novo no coração. Médicos acorreram. Massagens cardíacas. Nada. Meu coração
parou de bater.
Prólogo
Há três
anos, os maiores jornais do país em letras garrafais de primeira página,
traziam escritos – DOUTOR MARCIO BASSETO, O PRIMEIRO BRASILEIRO A GANHAR O
PREMIO NOBEL. Comparavam-no a Pierre Curie e Maria Curie pelo estudo da
radioatividade. A maior descoberta na época. O Doutor Marcio, sem ajuda
governamental e muitas vezes gastando do próprio bolso comprovou que a explosão
de um tipo específico de estrela no fim de sua vida (supernova) e a análise da
luz emitida nessas situações, demonstra que o universo cresce de forma acelerada
e não cada vez mais devagar como se supunha.
A nação
estava em polvorosa, pois nunca esperavam que um brasileiro pudesse ganhar um
prêmio desta magnitude. Dois anos depois, os jornais traziam em letras
garrafais na primeira página – O DOUTOR MARCIO BASSETO, É BALEADO NO JARDIM DAS
ROSAS, E VIROU HEROI DO POVO. Seis terroristas tentaram matar os filhos do
Presidente da Republica, que acompanhado de amigos e seguranças, estavam indo a
pé para uma partida de futebol de salão.
O Doutor
Marcio Basseto, sua esposa dona Maria Inês e seus dois filhos de seis e sete
anos, Darlene e Mauricio, brincavam no jardim das Rosas quando os terroristas
começaram a atirar. Doutor Marcio num ato heróico pegou um dos terroristas,
tomou sua arma e matou três deles, outros dois ficaram feridos e o sexto fugiu,
sendo capturado logo a seguir pela policia. Infelizmente os tiros dos bandidos
mataram na hora a esposa e os filhos do Doutor Marcio. Ele levado ao hospital
sobreviveu de uma bala alojada no cérebro que o fez perder a memória para
sempre.
O Doutor
Marcio Basseto e sua mãe dona Eugenia Basseto, pertenciam à aristocracia
nacional. Ela sempre requisitada para festas beneficentes. Parece que não se
dava bem com o filho. Doutor Marcio, filho único se distanciou de tudo e de
todos quando resolveu se casar com Maria Inês uma jovem simples e humilde que
morava em uma favela da capital.
Os jornais
do dia trouxeram a ultima noticia do dia, desta vez em uma pagina escondida
onde se lia – Doutor Marcio Basseto. 1960 – 2008. O famoso físico Doutor Marcio
Basseto, morreu ontem à tarde, no hospital Conrado Pacífico, vitima de parada
cardíaca. A família enlutada convida
para o féretro que será realizado hoje, às quatro da tarde, no cemitério Jardim
da Saudade.
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