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sábado, 15 de fevereiro de 2014

O céu por testemunha. O crime do Padre Lourenço.



Amor é fogo que arde sem se ver;
É ferida que dói e não se sente;
É um contentamento descontente;
É dor que desatina sem doer.

É um não querer mais que bem querer;
É um andar solitário entre a gente;
É nunca contentar-se de contente;
É um cuidar que se ganha em se perder.

É querer estar preso por vontade
É servir a quem vence o vencedor,
É ter com quem nos mata lealdade.

Mas como causar pode seu favor
Nos corações humana amizade;
Se tão contrário a si é o mesmo amor?


O céu por testemunha.
O crime do Padre Lourenço.

               Faz tempo. Muito. Quem me contou esta história acho que não está mais entre nós. Quando o conheci tinha mais de oitenta anos. Bebericava uma cerveja no bar do Toninho, sozinho e pensando na vida. Ele chegou e sentou sem pedir. - Mais um copo pediu! Era um "Velho" simpático. Cara lisa, cabelos brancos, magro feito um palito. Simpático. Não disse nada. – Mais um copo falei para o Toninho. Ficamos ali jogando conversa fora. Passava de nove da noite e ele entrou no assunto do Padre Lourenço. Contou-me toda a história. Triste. Muito. Podem até dizer que conhecem centenas de outras iguais. Concordo. Mas aquele "Velho" me contou de uma maneira tal que me emocionou. Olhe para dizer a verdade fui para a pensão onde estava há alguns meses e sentado na cama fiquei acordado por horas pensando. Não tinha tantos motivos para isto. Podem criticar. Paciência.

               O Padre Lourenço era de família pobre. Sempre teve vontade de ser padre. Seu sonho era servir a Deus Nosso Senhor. Quando fez três anos mal falava e dizia a sua mãe sua vocação. Ela ria. Não era incrédula nada disto, mas pouco frequentava a igreja. Rezava com ele todas as noites. Lourenço com quatro anos não perdia uma missa. Logo fez amizade com todos na igreja. O Padre Nonato, já velhinho tinha por ele um amor enorme. Com cinco anos ajudava na Missa e orações vespertinas. Cantava lindamente o Kyrie Eleison, todos gostavam de ouvi-lo cantar a Oração de São Francisco de Assis. Tornou-se na igreja um jovem que além de exemplo era um dos melhores alunos do grupo escolar que estudava.

                 Aos oito era conhecido por todos os católicos da cidade. Um menino de virtude que dava exemplo para todos os outros. As mães não cansavam de dizer aos seus filhos – Faça como o Lourenço, ele sim, é muito obediente e temente a Deus. Aos dez Lourenço foi para o seminário. Como seminarista estudava como nunca. Dominava Filosofia e Teologia como ninguém. Ajudava a todos os colegas, era bem quisto pelos padres dirigentes, e seu sonho de ser um sacerdote sobrepunha a todas as dificuldades que os outros sempre reclamavam com ele. Não era uma vida fácil. Sempre em oração pela manhã, missa diária, aulas e serviços comuns ele participava com alegria e prazer. As atividades pastorais era motivo de alegria para ele. Sua dimensão comunitária que correspondia à convivência, relações humano-afetivas e caridade eram motivo de orgulho por todos os seus amigos. Todos diziam que ele seriam um grande sacerdote. Quem sabe um futuro bispo?

               Sua ordenação aconteceu quando fez dezenove anos. Sua mãe estava presente e muitos parentes e amigos. A igreja do seminário estava totalmente cheia. A Santa Missa foi celebrada pelo Padre Nonato que fez questão de estar presente. Após o término Lourenço foi chamado a frente de todos e apresentado à assembleia que estava na primeira fileira da igreja. Foi questionado quanto a sua fé, seu trabalho, sua obra que iria realizar. Depois prometeu desempenhar com diligência suas funções ado sacerdócio, respeitando e obedecendo aos seus superiores religiosos. Prostrou-se diante do altar e enquanto rezaram iam cantando a Ladainha de Todos os Santos. Em silencio, foi oferecido à oração consecratória, e Lourenço foi investido com uma estola e uma casula. Crismado foi apresentado com o cálice sagrado e a patena. Uma cerimonia linda. Lourenço agora o Padre Lourenço não cabia em si de contente. Ia servir a Deus conforme era seu desejo.

              Apresentou-se uma semana depois a Vossa Excelência o Bispo Bonifácio. Beijou seu anel pastoral, fez uma genuflexão diante da cruz pastoral. O Bispo Bonifácio estava impressionado. Em todo seu prelado nunca tinha visto um padre como O Padre Lourenço. Achou que devia mandá-lo para uma paroquia em uma pequena cidade onde o padre atual estava nas últimas no hospital. Interessante. Era o oitavo padre que ficava doente e depois de dois ou três meses internado morria. Tinha de haver uma explicação. Contou tudo ao Padre Lourenço. Disse que ele devia descobrir o motivo desta mortandade. Padre Lourenço fechou os olhos e rezou. Pediu a Deus que lhe mostrasse o caminho. Despediu de sua Excelência e partiu para Santa Fé.

               Dois meses depois os jornais de todo o país estampavam em manchetes garrafais. Padre Lourenço da cidade de Santa Fé matou a pauladas uma menina de dezesseis anos. Lavy Antares uma jovem querida por toda a cidade foi vitima criminosa, sem explicação de um padre que todos diziam ser um grande seguidor de cristo. As autoridades episcopais não acreditavam no acontecido. Estavam estarrecidos. A mãe do Padre Lourenço foi internada as pressas quando soube e muitos parentes boquiabertos. Ninguém sabia explicar o motivo. Encontraram o padre sentado em uma cadeira, um porrete na mão cheio de sangue, a menina toda esfolada e parte do crânio aberto pelas porretadas. O padre não falou nada e até hoje ainda preso não explica o que fez. Ficou mudo.

              Um repórter foi até Santa Fé e todos eram unânimes que o padre era uma flor de pessoa. Um passado impecável. Amável, tratava a todos com carinho, a igreja depois de sua chegada ficava sempre cheia quando das missas, pois ele celebrava com uma maneira tão linda que cativava a todos. Um crescimento quantitativo de fieis aconteceu. Organizou as Filhas de Maria, deu força ao Grupo Escoteiro instalado em uma sala da paróquia, movimentou fieis para organizarem melhor o Catecismo que não tinha boa presença. Visitava diariamente fieis ou não que estivesse doente. Não tinha hora do dia ou da noite que era chamado e atendia sorrindo. Ninguém entendera bem o que aconteceu. Nenhum fiel nenhum morador tinha uma explicação.

             Lavy era católica praticante como sua mãe e seu pai. Não perdia uma missa. Ficava de olhos fixos nos santos que adornavam o altar e balançava a cabeça para frente e para trás como a entender a palavra do padre. Diziam que ela quando a missa terminava pegava uma vassoura e varria toda a igreja. Quase não saia de lá. Desde pequena que todos a consideravam uma devota e para alguns uma santa. O repórter ficou uma semana em Santa Fé. Não descobriu nada. Porque um padre, considerado modelo matou uma menina indefesa? O que houve? Possessão? Obsessão? Tomado pelo Demônio? Difícil saber. Santa Fé era uma cidade pacata, quase todos os habitantes católicos e só uma Igreja Presbiteriana mesmo assim tinha poucos fieis. O repórter desistiu. Um mês, dois e no quarto não havia mais manchetes, o publico perdeu o interesse.

             Naquela quinta chuvosa, sentado na sala paroquial o Bispo Bonifácio tentava pensar em outros temas em outros assuntos, mas não conseguia. O Crime do Padre Lourenço não saia de sua mente. Tentava uma explicação pelo acontecido. Não tinha. Lembrava a confissão do Padre Lourenço. Fora visitá-lo na prisão. Não sorriu uma única vez. Quase não falou a não ser quando confessava. Quem poderia imaginar? Seria verdade ou mentira do Padre Lourenço? E que adiantava agora? Lembrava palavra por palavra o que ele disse. Nunca ninguém saberia, pois o que ouviu era segredo de confessionário. Tinha que guardar para sí tudo o que ele disse. Sabia que ele nunca contaria para ninguém. Não iria ajudar a igreja em nada. Para dizer a verdade seria melhor que ele não tivesse dito nada. Pelo menos poderia dormir em paz o que agora não conseguia.

            - Excelência, começou Padre Lourenço. Perdoe-me se puderes. Pequei contra Deus e contra os homens. Aceito minha penitencia de morrer aqui nesta prisão. Sei que não tenho futuro e meu passado não existe mais. Todos me conhecem como o Padre assassino. Sou mesmo. Piedade? Não quero e não mereço. Sabe excelência, os outros padres que morreram quem sabe poderão compreender melhor. Claro também não irão me perdoar.  Mas olhe não quero o perdão deles. Não quero porque não mereço mesmo. Ninguém iria acreditar que ela era possuída. Nunca o demonstrou para ninguém. Se não tivesse feito o que fiz seria uma mortandade de padres naquela paroquia. Como? Simples Excelência. Lavy Antares tinha o rosto de um anjo. Quem a visse rezando nas missa e em orações poderia dizer que ela era uma santa, pois nem namorado tinha. Dizia para sua mãe que quando fizesse dezoito anos iria entrar em um convento.

           Sabe Excelência, quando ela me procurou tive uma enorme simpatia pela menina. Educada, prestativa, e olhe só fiquei sabendo que era surda e muda dois dias depois pelo sacristão Leôncio. Muda e surda? Risos. Não era não Excelência. Enganou a muita gente. Ninguém acreditaria no que ela fazia com os padres na paróquia. Eu fui surpreendido cinco dias depois que assumi a paróquia. Estava em meu quarto quando ela entrou. Levei um susto enorme. Levantei da cama e pedi para ela me esperar na sacristia. Excelência precisava de ver o rosto dela. Afogueado, totalmente alterada e sorrindo sorrateiramente. Aproximou-se de mim e segurou meu membro com força e me beijou. Deus meu! O que era isto? Sai correndo e ela rindo atrás. Agarrou-me pelo ombro e me deu uma dentada na nuca. Sangrou. Achei que ela estava louca. Olhei em seus olhos e foi então que vi o Demônio. Sim Excelência. O Demônio.

            Saí pela rua transtornado e olhei para trás e a vi de olhos baixos, indo para sua casa. Não sabia o que fazer. Não tinha a mínima ideia qual rumo devia tomar. Entrei novamente na igreja e rezei. Rezei muito, pedi a Deus que me ajudasse. Mostrasse-me o caminho que deveria seguir. A noite chegou. Rezei a missa das seis tremendo. Não sei se os fieis observaram alguma coisa. Dormir cheio de temor. Na missa da manhã lá estava ela. De olhos baixos rezando. Pedi a Deus por ela. Que a protegesse. A missa acabou e fui me trocar. Prometi a dona Joventina de visitar seu marido doente. Ela tinha insistido. Não deu. Ela a maldita entrou no meu quarto. Trancou a porta a chave. Tirou a roupa. Ficou nua em minha frente. Rangeu os dentes e falou com voz roca. “Padre maldito, agora você vai-me foder!” Pulou em cima de mim. Uma força descomunal. Rasgou minha batina, rasgou minhas roupas íntimas. Jogou-me na cama e sentou em mim.

              Incrível Excelência. Não era ela, era o Demônio. Tremendo perguntei a ele o porquê de tudo aquilo. Ela ou ele, me forçando a entrar nela gritava e rosnava. Malditos padres, odeio voces todos! Nesta paróquia não vai ficar um vivo. Mordeu-me no pescoço. Senti uma dor imensa e logo o local passou a coçar. Ela ria. Um riso de gente morta. Ela fedia. Um mau cheiro incrível. Tentei tudo para me desvencilhar e não consegui. Meu membro não subia. Não tinha como. Ela forçava e ele saia. Desistiu e vestiu suas roupas. Abriu a porta e disse – Sua vez chegou. Vai morrer em breve maldito padre de merda! – Quem acreditaria que a menina estava sendo possuída pelo Demônio? Na presença dos outros era uma santa. Fui de novo a igreja e chorei. Pedi a todos os santos, pedi a Deus. Ajude-me!

                Sabe excelência, tinha resolvido procurá-lo. Não sabia se ia acreditar em mim. Mas a decisão estava tomada. Avisei ao Sacristão que ficaria dois dias fora. Fui fazer a mala. Ela entrou. Maldita! Logo ficou nua. Gemendo disse que se não a comesse gritaria que eu a estava violentando. Deu-me um tremendo murro na testa que cai de boca no chão. Foram vários chutes. Quebrou dois dentes da minha boca. Ela sangrava. Agarrou meu membro e apertou. Doeu muito. Gritei de dor. Ela ria. Soltou-me e disse – Deite, agora ou me fode ou eu te mato! Que me matasse Excelência preferia morrer. Mas uma voz me disse que eu tinha de acabar com aquilo. Outro viria mais outro e outro e nunca iria acabar. A menina possuída pelo Demônio seria sempre a virgem da cidade. Ninguém acreditaria em nenhuma historia que ela era possuída.

                Saltei da cama. Ao lado da janela tinha um mourão que usava como tranca. Bati na sua cabeça com força. Fiquei possesso. Bati mais e mais. Vi o sangue jorrando. Sentei na cama. Ela estrebuchava no chão. Gemia e dizia com voz rouca. Matou essa, mas volto em outro filho da puta! Você não perde por esperar. Morreu e não ouvi mais nada. O sacristão vendo o barulho em meu quarto veio correndo. Abriu a porta e me viu sentado na cadeira todo ensanguentado com o porrete, ou melhor, o mourão e a menina esticada no chão e morta. Saiu correndo e gritando que o padre matou a virgem. Muito vieram. Tentaram me linchar. Achei que deviam. Mas a policia chegou logo. Transferiram-me de cidade. Agora estou aqui neste presidio. Fui julgado e condenado há trinta anos. Quero cumprir todos os dias. Nunca vou pedir para sair antes.

              O Bispo Bonifácio levantou da cadeira que estava na Sala Paroquial. Não dava mais para pensar e raciocinar direito. Não julgava mais o Padre Lourenço. Deus sabe o que faz. Sabia que pelo menos uma vez ao ano iria visitar o Padre Lourenço. Um homem que como padre seria o maior exemplo que ele conheceu. Nada aconteceu e sua vida virou do lado avesso. Nunca mais repórteres o procuraram. Passaram-se alguns anos quando a policia invadiu o Presidio durante uma revolta, mataram mais de cem detentos. Soube que o Padre Lourenço foi um dos primeiros. Tentou segurar os policiais dizendo a eles que não fizessem nada. Iriam se entregar. Recebeu uma bala no estomago e outra na cabeça. Morreu na hora. Se foi para ao céu o Bispo não sabia. Rezou por ele. Rezou também pela alma de Lavy Antares. Uma menina que não teve culpa.

             O "Velho" que me contava a história parou de repente. Seus olhos ficaram virados. Me olhou dentro dos meus e disse: - O Padre Lourenço era meu filho. Minha mulher ficou louca. Morreu em um hospício. Não tenho mais família. Ando aqui e ali e procuro paz. Não encontro. Que Deus tenha piedade da minha alma! Levantou e foi saindo. Na porta do bar virou e completou: - e De Celma minha mulher e do meu filho Lourenço. Sumiu na rua escura. Nunca mais o vi.

Soneto de Fidelidade

De tudo ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento.

Quero vivê-lo em cada vão momento
E em seu louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento

E assim, quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama

Eu possa me dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure.


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