Fluir de um rio.
Correm as águas do rio
Passam na agulheta do tempo
A mesma água não volta, nem pelo fio
Não repete a sua passagem, observo, lembro
A vida é como esse rio
Na superfície a velocidade instantânea
No fundo as correntes pesadas
As pedras roladas, as plantas prezadas
O que se esconde e funde no leito
Escorregadio que com os tempos feitos
Pouco mudam, pouco nadam
A vida de um rio, não é só a agua que passa
É as margens descoladas, divididas
São quem passa quem refresca
É a vida num todo que se compõe
É quem mergulha, quem acha
Quem muda, leva ou põe
É quem toca no fundo
Traz a vida que mergulha num rio também
O expresso do Rio Selvagem.
Carmem olhava pela janela do trem,
as belas paisagens que iam ficando para trás. Sua mente rebuscava timidamente
sua vida. Ela não sabia se era feliz, se tinha alegrias, tristezas, se sua vida
estava valendo a pena. Achou que era hora de pensar. Com calma. Merecia umas
férias. Quinze dias bastavam. Falou com seu diretor que autorizou na hora.
Afinal ela tinha já duas férias vencidas. Trabalhava muito. Arduamente. Começou
do nada e hoje era gerente na área de montagem. Telas de computador. Lembrava-se
do seu passado. Não foi bom mas o que passou, passou não volta mais. Lembrou-se
quando chegou em Santa Fé. Não era uma cidade pequena. As margens daquele rio
caudaloso ela se destacava pela sua beleza selvagem e pela sua competência. Não
sabia por que dissera selvagem quando lá chegou. Talvez pelo seu frenesi de
homens e mulheres que andam sem saber aonde ir. Queria esquecer tudo. Não
lembrar. Passar uma esponja em sua mente. Sabia que não dava. Esquecer não é
fácil.
Nasceu em Cidade Santa. Pequena.
As margens do rio onde a ferrovia passava e morava com sua Vó. Ali viveu boa
parte da sua vida. Ali viu seus pais serem enterrados. Mortos por nada. Uma
peste? Assim disseram. Morreu muita gente. Ela não, sua Vó também não. Precisava
de um emprego. Lá não conseguiria. Estava com dezenove anos, terminou o segundo
grau. Difícil estudar mais. Queria ser alguém se formar, quem sabe ser
professora ou então outra profissão que não fosse aquelas famosas que seria
impossível de conseguir. Achou que uns dias em Cidade Santa para rever sua Vó e
alguns amigos bastavam. Depois iria para Vitória. Procurar uma boa pousada em
frente ao mar. Aí sim, iria colocar sua vida em ordem. Nada tão estranho. Era
comedida. Tinha uma boa quantia na poupança. Poderia ter um carro mas achou que
morava a duas quadras do trabalho e não precisava.
Seria umas férias onde se daria ao
luxo do bom e melhor. Nada de economias. Carmem não era linda. Bonita sim,
simpática sim. Uns cabelos negros, olhos negros, um rosto muito simpático. Sua
voz era calma. Cativante. Teve alguns pretendentes. Mas nenhum deles lhe
interessou. Seu corpo era bem feito e ela cuidava bastante. Mesmo trabalhando
de sol a sol não deixava de frequentar a academia. Conheceu um Engenheiro
Espanhol que iniciou um trabalho na mesma empresa que ela. Era simpático,
alegre, despretensioso. Saíram diversas vezes. Nunca dormiram juntos. Carmem
jurou a sua Vó que só iria fazer amor depois de casada.
Gostava de viajar de trem. Quanto
tempo não fazia isto. Muitas saudades. A janela enorme, a vista linda, o verde,
o amarelo, o rio caudaloso, uma fazenda aqui outra casinha ali, uns dados adeus
e a meninada correndo ao lado do trem. Sentiu fome e viu que não tinha
almoçado. Levantou-se pegou sua bolsa e se dirigiu ao vagão restaurante. Não
notou um homem mal encarado que a acompanhou até lá. Sentou-se duas mesas atrás
dela. Carmem almoçou devagar. Não tinha pressa. Só chegaria em Cidade Santa lá
pelas quatro e meia da tarde. Pelo visto o expresso estava no horário. Bebeu
uma cerveja pequena. Deu-se ao luxo. Não fazia isto mas agora podia. Quando
voltasse a sua poltrona iria cochilar até chegar ao seu destino.
Pagou sua despesa e voltou
calmamente. Ao atravessar um vagão para o outro, onde fica a porta de saída do
trem, um braço a agarrou pelo pescoço. – Não grite. Se gritar enfio-lhe uma
faca nas costelas. Tomou dela sua bolsa. Começou a forçar sua calça para baixo.
Ele queria estuprá-la! Meu Deus! Isto não! Proteja-me. Ela gritou e mordeu com
força as mãos do maníaco. Ele gemeu alto e a chamou de puta. Abriu a porta e a
jogou do trem. Carmem não sentiu nada. Rolou em cima de algumas pedras e foi
parar próximo a uma moita de capim colonião. Ficou desacorda. O trem sumiu no
horizonte.
Carmem acordou quase à noitinha.
Não lembrava de nada. De nada mesmo. Quem era o que fazia ali nada. Sentia uma
dor tremenda na testa passou a mão e viu que tinha um corte enorme. Deve ter
sangrado muito mas agora já tinha coagulado. Não conhecia onde estava. Porque
estava ali também não sabia. Levantou-se com dificuldade. Suas roupas rasgadas.
Uma sede terrível. Começou a andar junto à linha do trem. Ouviu um barulho. Um
barulho que achava que já tinha ouvido antes. Era um carro de boi. Atravessou
um bosque e viu uma estradinha de terra. O carro de boi seguia devagar com duas
juntas de dois bois cada uma. O carreiro era um menino de uns quinze anos.
Correu para ajudá-la. Pediu para subir no carro pois ele estava indo para casa.
Não era longe.
Chegaram uma casinha de Sapé,
pequena, apenas dois cômodos. Uma cozinha e um quarto. Feita de bambu com
barro. Chão de terra. Carmem não estranhou. Não conheceu outra casa ou se
conheceu não lembrava. Lico o menino disse que morava ali com seu pai. Não
conhecera sua mãe. Ia sempre a Cidade de Manto Azul levar verduras e frutas
para vender. Viviam disto. Seu pai ainda pescava alguns peixes e quando dava
ele vendia também. À noitinha seu pai chegou. Assustou-se com Carmem. Lico
explicou o que acontecera. Ele chamou Lico em um canto – Olhe filho, ela parece
ser uma mulher fina. Não é daqui. Suas roupas mostram isto. – Pai, ela não
trouxe nada. Não tem nenhuma muda de roupa extra. Nem documentos!
Manuel não sabia ao que fazer.
Não tinha ideias. Era homem da roça. Entendia tudo dela. De mulher não. A única
lhe dera um filho e sumiu no mundo. Dificilmente ia a cidade para dar uma
“fisgada” em alguma na Rua do Taichim. Agora soubera da tal AIDS. Evitava tudo.
Não podia morrer enquanto Lico não fosse maior de idade. Lico sugeriu que ela
ficasse ali por uns tempos. Quem sabe recuperava a memória. Pensaram em levá-la
a Manto Azul mas lá não tinha delegado e nem prefeito. Era um arraial
simplesmente.
Carmem ficou lá por muito
tempo. Os dias passavam céleres. A noite sentava na porta da casinha e olhava
as estrelas pensava quem era de onde era e o que fazia ali. Aos poucos
acostumava a nova vida. Ajudava na horta, a colher jabuticabas, goiabas,
laranjas, mangas tudo quando era época. Um dia foi com Lico a Manto Azul. Todo
mundo veio para a porta. O pequeno arraial se assustou. Era uma mulher jovem e
bonita. Vestia um short e uma camisa velha. Devia ser de Manuel. Ninguém sabia
que ele estava com mulher. Ela fez algumas compras de roupas para ela. Roupas
simples. A lojinha ficou cheia de olheiros.
Carmem sem perceber começou a
gostar de Manuel. Olhava para ele e sentia que o amava. Mas seria amor mesmo?
Não sabia. O que era o amor? Também não sabia. Uma noite ele a beijou. Sentiu
que ele não sabia beijar. Segurou sua língua e ele assustou mas deixou. Fizeram
um amor louco. Ele não sabia como ela também não. Ela era virgem ele não mas
não tinha nenhuma experiência. Foi gostoso. Ambos gostaram. Não parou por ai.
Passaram a dormir juntos. Lico não se incomodou. Passou a gostar também de
Carmem. Quem sabe ela poderia ser sua mãe? Manuel disse que queria casar com
ela. Carmem achou melhor esperar para saber quem era.
Passaram-se quase um ano. Carmem
ao seu modo era feliz. Alí naquela casinha junto a Manuel não pensava em mais
nada. Não tinham luz, TV, geladeira e o fogão a lenha dava tudo que precisavam
para fazer a alimentação. Ela mesma fazia. Lavava e passava. Uma verdadeira
dona de casa. Não engordou, seu corpo até ficou mas esguio. Cuidava dos seus
cabelos. Suas roupas simples para ela bastavam. Manuel era calado. Falava
pouco. Conversava com ela em monossílabos. Não sabia ler e nem Lico também
sabia. Ela passou a ensinar aos dois. Compraram em Manto Azul, cadernos, lápis
canetas e uma tabuada.
Um ano e meio. Dois anos. Nada de
Carmem voltar a lembrar. Ela não se preocupava mais com isto. Vivia feliz muito
feliz ao lado de Manuel e para ela Lico era como se fosse um filho. Pensava que
se um dia recordasse quem era não iriam deixa-los nunca. Uma tarde voltada da
mata onde tinha muitos pês de jabuticaba e não abaixou a tempo de evitar uma
galhada grossa de uma jabuticabeira. Bateu a cabeça tão forte que ficou zonza e
caiu ao chão. Estava só mas meu Deus! Ela voltou a se lembrar. Tudo veio assim
do nada e ela agora sabia tudo de sua vida. Voltou correndo. Chamando alto
Manuel e Lico – Lembrei-me! Agora sei o que fui! Mas ao olhar o semblante deles
ficou triste também. O medo de perdê-la era grande. E ela não sabia que atitude
tomar.
Dormiu abraçado a Manuel. Disse
que nunca iria abandoná-los. Mas tinha de voltar em Cidade Santa para saber de
sua Avó e depois iria a Santa Fé. Tinha lá um apartamento, roupas, móveis e
dinheiro no banco. Precisava ver se tudo estava lá. Lico chorou quando ela
partiu. Manuel abraçou-o e ambos choraram quando ela pegou o trem de volta a
Santa Fé em Derribadinha. Carmem também chorou. Mas prometeu voltar. Manuel e
Lico não acreditaram. Sabia que ela era uma moça de cidade grande, estudada e
porque voltaria?
Na janela do expresso Carmem
olhava o rio, as casas as fazendas e o seu passado. Desceu sem pressa na
estação de Santa Fé. A cidade pouco mudou. Um taxi a levou em seu apartamento.
Fechado. O porteiro a reconheceu e sorriu quando ela contou por partes o que
tinha acontecido. Disse que a policia, o diretor e muitos da empresa que ela
trabalhava lá estiveram. Ele tinha copia da chave. Ela entrou. Olhou, não
sentiu saudades. Saudades sim de sua tapera de barro com telhas de folha de
coco e capim seco. Foi até a empresa. Uma surpresa de todos. O diretor pediu a
ela para ir a sua sala. Uma festa. Era muito bem quista. Dois anos e meio fora
e todos compreenderam o que aconteceu com ela.
O diretor disse que sua vaga
estava em aberto. Ela podia começar a trabalhar quando quisesse. O salario
seria aumentado. Não disse nada. Iria pensar e depois dar uma resposta. Ele não
entendeu. Não quer mais o seu lugar? Vai voltar para a tapera onde morou muitos
anos? Ela não sabia o que fazer. Duvidas e mais duvidas. Pediu um prazo. Duas
semanas. O diretor riu. Claro que sim. Você não vai deixar isto aqui para morar
lá no mato em uma casinha de barro. Carmem foi para o apartamento não antes de
passar no banco. Estava tudo lá e até mais com os juros. Quase um milhão e
meio.
Dormiu mal em sua cama de casal.
Grande, colchão de mola, caro que comprou há muitos anos. Estava novo ainda.
Ficou ali olhando para o teto e pensando. Dormiu sonhando com Lico e Manuel.
Pela manhã já sabia o que fazer. Publicou no jornal local a venda de tudo. Apartamento
mobiliado. Separou as roupas que precisava as demais doou para uma instituição
de caridade. Deixou o dinheiro da poupança lá no mesmo banco. Tirou cem mil
para despesas. Foi à empresa e agradeceu ao Diretor pela confiança. Abraçou a
todos os seus amigos e ao espantado engenheiro espanhol que tinha namorado.
Pegou o expresso novamente rumo a
Cidade Santa. Precisava ver sua Avó. Desta vez prestou atenção a tudo no vagão
de primeira classe e quando foi ao vagão restaurante ficou de olho. Nada
aconteceu. Sorriu quando viu sua Avó viva. Foi uma festa o encontro das duas.
Contou tudo. Ela compreendeu e a motivou a continuar com sua tomada de decisão.
Deixou um cheque com ela de cinquenta mil reais. Disse que voltaria daí a um ano e daria mais
a ela. Em oito dias estava de volta. Desceu em Derribadinha. Uma maleta com
poucas roupas. Nenhuma joia. Só com o saldo do dinheiro que tirou. Agora uns
quarenta mil reais. Poderia ter comprado um carro, chegar lá de carro novo. Não
era o que desejava.
Comprou uma pequena charrete de
três lugares. Um cavalo baio bom para trotar. Saiu de Derribadinha às duas da
tarde. Às quatro e meia chegou a Manto Azul. O povo todo veio à porta. Nunca
acreditaram que ela ia voltar. Já sabiam de sua história. Ela cumprimentou a
todos. Sorria. Às seis e meia da tarde avistou a Casinha. Avistou de longe Lico
que veio correndo e gritando chamando seu pai. Desceu da charrete e o abraçou
com força. Era seu filho. Não de “barriga” mas de direito de mulher do seu pai.
Manuel a olhou. Sorriu sem jeito. Pensou em abraçá-la. Estava bonita. Roupas
novas. Sapatos novos. Um brinco de ouro. Teve medo. Achou que ela foi ali para
despedir para sempre. Ela o abraçou. Disse – Manuel sou sua mulher. Nunca mais
me separarei de você. Abraçaram-se ali, um beijo enorme. A lua brotou no céu. “Bunita,
que nem um queijo redondo”.
Ela de vez em quando voltava a
Santa Fé. Levava Manuel e Lico juntos. Tirava dinheiro do banco, não muito,
faziam umas comprinhas e voltavam ao seu lar, sua casinha de barro de chão de
terra com um banquinho na porta para ver as estrelas e a lua quando estava
cheia. Acertou em cheio. Nunca se arrependeu. O que sei é que viveram felizes
por toda a vida. Um amor simples, uma aceitação de ambos que só podia ser de
almas gêmeas!
Não
escrevas aos meus olhos.
Não me iludas se não
tens a intenção
de entregar-me
o teu coração!
Não escrevas aos meus olhos
lindas palavras de amor
se pensas fazê-lo
chorar de dor!
Não grites que me amas
se o teu silêncio
revela que apenas
me enganas!
Não quero mais
os teus beijos...
Quero apenas um pouco de paz!
Vou ardendo de desejo
quando lembro
das tuas mãos deslizando
no meu corpo gélido
nas madrugadas
que fui inocente
entregando-me a ti
Poeta indecente,
de corpo, alma
e coração.
Mas agora basta!
Não viverei mais de ilusão.
Já sofri demais
nessa vida madrasta!
Nenhum comentário:
Postar um comentário