A FLOR E A FONTE
"Deixa-me, fonte!" Dizia
A flor, tonta de terror.
E a fonte, sonora e fria
Cantava, levando a flor.
A flor, tonta de terror.
E a fonte, sonora e fria
Cantava, levando a flor.
"Deixa-me, deixa-me, fonte!”
Dizia a flor a chorar:
“Eu fui nascida no monte...
“ Não me leves para o mar”.
Dizia a flor a chorar:
“Eu fui nascida no monte...
“ Não me leves para o mar”.
E a fonte, rápida e fria,
Com um sussurro zombador,
Por sobre a areia corria,
Corria levando a flor.
Com um sussurro zombador,
Por sobre a areia corria,
Corria levando a flor.
"Ai, balanços do meu galho,
“ Balanços do berço meu;
“Ai, claras gotas de orvalho
“ Caídas do azul do céu!..."
“ Balanços do berço meu;
“Ai, claras gotas de orvalho
“ Caídas do azul do céu!..."
Chorava a flor, e gemia,
Branca, branca de terror.
E a fonte, sonora e fria,
Rolava, levando a flor.
Branca, branca de terror.
E a fonte, sonora e fria,
Rolava, levando a flor.
"Adeus, sombra das ramadas,
“ Cantigas do rouxinol;
“Ai, festa das madrugadas,
“ Doçuras do pôr-do-sol;
“ Cantigas do rouxinol;
“Ai, festa das madrugadas,
“ Doçuras do pôr-do-sol;
"Carícias das brisas leves
“ Que abrem rasgões de luar...
“Fonte, fonte, não me leves,
“ Não me leves para o mar!"
“ Que abrem rasgões de luar...
“Fonte, fonte, não me leves,
“ Não me leves para o mar!"
*
As correntezas da vida
E os restos do meu amor
Resvalam numa descida
Como a da fonte e da flor..
E os restos do meu amor
Resvalam numa descida
Como a da fonte e da flor..
Vicente de Carvalho
A canção de Bernadete
O sol estava vermelho junto às nuvens
escuras que chegavam de mansinho naquela tarde fria de final de inverno. Bernadete
se dirigia para sua casa depois de fazer sua peregrinação de casa em casa
pedindo ajuda para sua mãe. Não tinham o que comer. Seu pai morreu de
tuberculose e sua mãe ia pelo mesmo caminho. Mas Bernadete não sabia disto.
Apenas oito anos e ninguém para explicar a ela que sua mãe partiria em breve.
Não fora um dia ruim. Ganhou um pouco de arroz, um pouco de macarrão. Não era
nada, mas daria para uns dois dias as duas se alimentarem. Bernadete não
estudava. A escola não aceitou com medo que ela passasse a doença para as
outras alunas.
Não tinham luz
elétrica e água encanada. Ela tirava a água necessária na cisterna no fundo do
quintal. Bernadete cantava. Estava feliz. Dois dias sem ter o que comer. Sua
mãe lhe ensinou a cantar nas horas difíceis. Cantava e sonhava com a música que
aprendeu com ela. Luar do Sertão. Sozinha pela rua quase deserta ela cantava. “Não há, oh gente, não luar Como esse do sertão. Oh que saudade do luar
da aminha terra, lá na serra branquejando, folhas secas pelo chão...”.
Bernadete amava cantar esta canção. Ao entrar em casa saudou a mãe
carinhosamente. Pela primeira vez não teve resposta. Foi até ao quartinho e sua
mãe inerte. Não falava. Ela balançou chamando Mamãe! Mamãe! Era o fim. Ela
sabia. Sua mãe se fora. Ela a tinha prevenido.
No dia seguinte
enterraram sua mãe no cemitério da Saudade no centro da cidade. Uma senhora da
prefeitura se encarregou de tudo. Os olhos de Bernadete estavam vermelhos de
tanto ela chorar. Agora não chorava mais. Esqueceu-se de pensar para onde ia,
qual seria seu destino. Não conhecia ninguém. Nem sabia se tinha algum parente.
Sua mãe nunca disse nada. Cantou baixinho quando sua mãe desceu a sepultura
para sua última morada. “Este luar cá da cidade tão escuro, não tem aquela
saudade do luar do meu sertão!”. A mulher da prefeitura disse para ela arrumar
suas coisas. Ela ia morar com Dona Heloisa mulher do Seu Nivaldo o tabelião.
Bernadete não disse nada. Não conhecia ninguém. Quem sabe seria feliz lá?
Dona Heloisa a olhou
de uma maneira que a fez tremer e baixar a cabeça. Disse – Menina, eu não gosto
de preguiça. Não gosto de gente respondona. Não gosto de gente suja. Portanto
faça o que eu mandar e vamos viver bem as duas. Curto seco e grosso. Nada mais.
Nem uma palavra de carinho. Perdera sua mãe e agora perdera também alguém que a
pudesse acariciar e dizer palavras como sua mãe dizia – Eu gosto de você, eu
amo você. Bernadete recebeu as tarefas do dia. Varrer e passar pano molhado em
toda a casa. Limpar todos os dias o quintal das folhas das arvores. Arrumar as
camas, lavar as roupas dos meninos. Esqueci-me de dizer, Dona Heloisa era mãe
de Larita e Lourenço. Não reclamou. Ambos eram quase da mesma idade dela com
exceção de Lourenço. Dois anos mais velho. Quem sabe seriam amigos?
Queria ser amiga deles,
mas Dona Heloisa não deixou. – Você é empregada eles são os patrões. Fique no
seu lugar. Bernadete quase ficou triste, mas lembrou de sua mãe e cantou: -
“Não há oh gente, oh não luar...” isto a fazia lembrar-se da sua mãe e assim
ela sorria. Seu Nivaldo nunca a cumprimentou. Nem olhava para ela. Era normal.
Ela aceitava. Dona Heloisa não quis colocá-la na escola. Não disse o porquê.
Bernadete ficava quando tinha folga escrevendo seu nome. Achou um livrinho de beabá
jogado no lixo. Em pouco tempo aprendeu a ler sozinha. Ela era muito
inteligente.
O tempo passou. Os anos
passaram. Os filhos de Dona Heloisa foram estudar em um colégio interno na
capital. Bernadete torcia contando os dias e as horas quando eles de férias
voltavam para casa. Ela se sentia feliz com eles ali. De vez em quando Larita
falava com ela, mas Lourenço nunca. Estava ficando um belo rapaz. Com seus
dezesseis anos já era bem alto, seus cabelos loiros caiam na testa e era um
charme vê-lo balançar cabeça para tirá-los dos olhos. As moças da cidade
morriam de amores por ele. Bernadete estava com quatorze anos. Nunca foi
bonita. Tinha uma perna mais curta que a outra e andava mancando. Seu rosto não
era feio apesar de ter os cabelos crespos e por isto ela mesma o cortava para
não ficar grande demais. Tinha um lindo sorriso e isto encantava quem não a
conhecia. Dona Heloisa a presenteava uma
vez ou outra com as roupas de Larita que não serviam mais nela. Bernadete se
deliciava. Sorria e cantava: “E a gente pega na viola que ponteia, e a canção é
a lua cheia a nos nascer do coração!”. Não conseguia fazer amigos. Não podia
sair. Quando saia era para ir à padaria ou ao armazém.
Bernadete nunca
esqueceu o semblante de sua mãe. Dormia em um quartinho no fundo do quintal que
ela arrumou ao seu modo. Gostava quando estava lá, pois fez amizade com um
canário Belga amarelo que vinha sempre cantar para ela na janela. Não tinha
cortinas. Não podia ter. Mas tinha uns vasinhos com flores silvestres que ela
regava diariamente. Agora não era mais só o canário amarelo. Um sabiá e um
Pássaro Preto se juntou aos outros. Eles sempre pela manhã acordavam Bernadete
com seu cantar na janela e ela contente corria para saudá-los.
Bernadete levantava cedo. Muito. Tinha de
fazer o café, ir à padaria, e voltar à velha rotina da casa. De uns tempos para
cá Dona Heloisa a deixava passear até a praça aos domingos à tarde. Gostava
muito. Via gente, meninos brincando e ela sorria para eles com sua alegria
infantil, pois a pureza de Bernadete persistiu por todos os anos da sua vida.
Ela olhava as meninas a brincarem no pula-pula, no balanço e a descer e subir o
escorregador. Quando todos sorriam ela cantava. Nunca deixou de cantar a canção
que sua mãe ensinou para ela. “Não há, oh gente...”.
Bernadete quando fez
vinte anos ainda continuava a mesma. Sempre alegre, sempre fazendo tudo naquela
casa. Agora cozinhava também, pois Dona Heloisa teve um problema nas pernas e
não podia andar. Ficava em uma cadeira de rodas azucrinando o dia inteiro sua
vida. Bernadete ficou mais encorpada. Seus seios cresceram. Suas pernas apesar
de uma mais curta ficaram mais grossas. Seu cabelo ainda crespos cortados
curtos lhe davam um aspecto faceiro e até sensual. Mas ela não sabia o que era
isto. Um dia ao varrer o corredor ouviu gritos e correu para ajudar. Mas era no
quarto de Dona Heloisa. Ela gemia e pedia mais. Bernadete não entendeu nada. O
que seria? Um dia ao sair da igreja Sentou em um banquinho onde varias meninas
conversavam. Falaram de sexo, de penetração, mas penetrar o que? Nunca tinha
visto um membro de um homem. Ouvia falar, mas não sabia como era. Não era um
assunto que ela queria pensar. Todas as noites ajoelhava próximo a sua cama e
agradecia a Jesus por tudo que estavam dando a ela. Não passava fome, tinha um
quartinho só dela e tinha os passarinhos que eram seus amigos. Ela quando
deitava sentia os lábios de sua mãe a lhe beijar. Ela vinha todas as noites.
Bernadete sabia. Dormia sorrindo!
Um dia Lourenço
chegou da cidade grande com uma moça linda. Faceira. Loira também e os cabelos
compridos iam até sua cintura. – Meus pais, esta é Edna, minha esposa. Sua mãe
levou um susto e seu pai quase caiu da cadeira. Bernadete sorriu para ela como
a dizer – Seja bem vinda moça linda! Edna perguntou quem era Bernadete –
Lourenço respondeu que não era ninguém. Uma empregada mal agradecida, pois
deram tudo para ela e fazia tudo errado! Bernadete abaixou a cabeça e sem
perceber começou a cantar baixinho – “A lua nasce por detrás das verdes
matas...” – O que é isto Edna perguntou. Nada, ela é louca. Cuidado com ela.
Um ano depois
Lourenço deixava Edna sozinha em casa e ia para a Rua do Quebra Cachaça.
Bernadete não sabia o que era isto, mas achou que não era boa coisa. Voltava
tarde, bêbado e chingando todo mundo. Um dia chegou calado e foi até o quarto
de Bernadete. Entrou e deitou com ela em sua caminha estreita. Bernadete
assustou e ia gritar quando ele disse – Se gritar vou contar a todo mundo que
você me chamou. E vão escorraçá-la daqui para fora. Rasgou sua camisola. Ela
sentiu a dor da penetração. Foi forte. Ele logo parou, pois a molhou toda por
dentro. Bernadete chorava baixinho. De dor e de vergonha. Lourenço arrumou as
calças e foi embora. Por vários dias nem olhava para ela.
Edna suspeitava que
Lourenço tivesse feito “mal” a Bernadete. A maneira como ele procedia em casa
junto a ela não dava para esconder. Notou que Bernadete quase não ria mais.
Andava sempre triste, de cabeça baixa. Não demorou e a barriga de Bernadete
começou a crescer. Dona Heloisa não perdoou. Queria a todo custo mandar ela
embora. Uma “puta” isto sim dizia. Faltou com o respeito! Meu filho casado e
ela nem pensou nisto? E minha filha o que vai dizer? Bernadete sempre ficava de
cabeça baixa. Os olhos cheios de lágrimas, mas ela cantava sem ninguém ouvir –
“E a gente pega na viola que ponteia...”.
Seu Nivaldo não deixou. E você nesta cadeira de rodas vai fazer tudo?
Quando o filho de Bernadete nasceu, foi em
outubro. À noite. Ninguém ajudou. Edna ouviu os gritos e correu a ajudar. O
menino já havia nascido. Quando pegou o menino sentiu que era lindo! Não falou
nada com ninguém. O levou para seu quarto e disse a Lourenço que ele seria
filho dela, pois ele era o pai. Um susto. Lourenço não falou nada. Bernadete no
outro dia tentou levantar. Lavou-se. Os pássaros cantavam para ela na janela
apesar de sua dor e tristeza. Sentiu que toda a noite sua mãe estava lá. Sorrindo
para ela e dizendo – Calma minha filha, sua recompensa não tarda. Bernadete com
dificuldade voltou ao trabalho. Edna a chamou em um canto e disse que ia tomar
conta do filho dela, bastava ela amamentar. Daria tudo a ele. Não iria faltar
nada. – Você nunca teria condições de cria-lo! Bernadete chorou. Chorou muito,
mas mesmo assim conseguiu cantar – “Este luar cá da cidade tão escuro, não tem
aquela saudade do luar do meu sertão!”.
Passaram-se os anos.
Antônio Carlos cresceu. Bernadete o olhava com amor e carinho e sorria. Ele não
gostava dela, sempre lhe virava as costas. Seu filho não sabia que ela era sua
mãe. Nunca o beijou, nunca o abraçou. Viveu junto a ele até quando fez sessenta
anos. Ele rapagão, bonito, forte, se formou engenheiro. Vinha em casa, trazia
presentes para todo mundo. Para Bernadete não. Ela o olhava orgulhosa, seus
olhos brilhavam. Lágrimas se faziam cair. Ela fazia tudo que ele pedia. Mas ele
nem sequer lhe sorria. Mesmo assim ela cantava de alegria – “A canção e a lua
cheia a nascer no coração!”.
Um dia Bernadete
começou a tossir, da tosse viu que sangrava. Tentou esconder. Dona Heloisa bem
velha, mais de oitenta anos disse – Como sua mãe. Tuberculosa! Tire ela desta
casa! Internem ela em um sanatório! Seu Nivaldo não deixou. Afinal Bernadete
dedicou uma vida inteira a família, nunca teve nada, e agora por ela para fora?
Dois meses depois, em uma manhã de sol brilhante, Bernadete ao acordar viu os
passarinhos cantarem em sua janela, não era só os três, eram centenas. Foi uma
surpresa. Ela nunca viu um dia tão bonito, ensolarado, lindas nuvens no
horizonte. Parecia que estava em um enorme jardim e o perfume das flores era trazidos
até sua janela por aragens refrescantes vinda do céu. A família veio correndo para
ver o que era. Uma multidão de passarinhos a cantar próximo a janela de
Bernadete. Entraram e a viram deitada inerte. Um fio de sangue escorria em sua
boca. Estava morta.
Bernadete os viu
entrar tentou sorrir, ia pedir desculpas. Mas viu seu corpo na cama. Ia falar
com eles, mas sua mãe chegou. Estava toda vestida de branco. Atrás uma luz
brilhante com vários anjos a cantar e os passarinhos cantaram também. O que é
isto perguntou Dona Heloisa, assombração? Saiu rápido em sua cadeira de rodas.
Seu Nivaldo estava boquiaberto. Larita que estava visitando não suportou a
forte luz que vinha da janela. Lourenço tremia e Edna sorria. Antônio Carlos
não estava em casa. Tinha viajado para o “estrangeiro”.
Os vizinhos
acorreram à casa dos Nivaldos. Eram milhares de passarinhos. Nunca se viu tanto
e todos voando em volta da casa de Dona Heloisa. Cantavam e faziam uma enorme
algazarra. Bernadete ficou em dúvida. Ficar ali ou ir com sua mãe? Sentiu
tristeza em deixar aquela família que apesar de tudo ela os amava. Sua mãe
sorria e dizia, - vem minha filha, eles ficaram amparados apesar do que fizeram
a você. Todos passamos por isto. Eles irão um dia também passar as dificuldades
da vida. E Bernadete seguiu sua mãe. A luz forte e brilhante as acompanhou
enquanto desapareciam no horizonte. A passarada foi atrás e nunca mais voltaram
naquela casa.
Bernadete ficou
deslumbrada com a cidade onde foi morar. Era linda, toda colorida e cheia de
flores. Não sabia que tinha tanta gente que a conhecia. Sempre diziam – Olá
Bernadete. Seja bem vinda! Esperamos muito este dia. Que Jesus esteja com você!
E todos sempre sorrindo. Eram centenas que iam visitá-la em sua casinha branca
cheia de rosas perfumadas de todas as cores. Eles sorriam para ela, a abraçavam
e beijavam carinhosamente. Ela sentiu ali que o amor era o elixir da vida que
sustentava a cidade. Sentia que agora pertencia a uma família, uma família
enorme, linda, a família de Jesus. Ele havia atendido seu pedido e as suas
preces. Viu que sua tosse não existia mais. Viu que também se vestia de branco
e adorava. E as tardes, ela e sua mãe sentavam na varanda e cantavam. Não se
sabe como, uma viola invisível dedilhava a canção e os passarinhos seus amigos
faziam um coro tão lindo que a transformavam na mais bela canção do mundo. Era Maravilhoso.
Impossível descrever e tão incrível de ouvir que toda a cidade do além parava
para escutar a Canção de Bernadete:
Não há, oh gente
oh não, Luar
Como esse do sertão.
Oh que saudade
Do luar da minha terra
Lá na serra branquejando
folhas secas pelo chão
Este luar cá da cidade
Tão escuro
Não tem aquela saudade
Do luar lá do sertão
Não há, oh gente...
Se a lua nasce
Por detrás da verde mata
Mais parece um sol de prata
Prateando a solidão
E a gente pega
Na viola que ponteia
E a canção
É a lua cheia
A nos nascer do coração
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