Destino.
Á ternura pouca
Me vou acostumando
Enquanto me adio
Servente de danos e
enganos.
Vou perdendo morada
Na súbita lentidão
De um destino
Que me vai sendo
escasso.
Conheço a minha morte
Seu lugar esquivo
Seu acontecer disperso
Agora
Que mais
Me poderei vencer?
“Mia Couto”.
Destino, uma vida, um sonho esquecido.
Macbeth estava dormindo. Uma noite gelada. Um inverno rigoroso. Macbeth
tinha experiência com o frio. Sabia que não daria tempo para chegar ao seu
barraco na Favela São Benedito. Era lá sua morada. Um quartinho. Ganhou de um
amigo que foi trabalhar em uma cooperativa e melhorou de vida. O jeito era
dormir próximo ao Viaduto do Socorro. Era sua segunda casa. Estava acostumado,
mas o frio doía até nos ossos. Seu carrinho de mão comprado com tanto
sacrifício ele não abandonava nunca. No barraco fez uma passagem maior na porta
para ele passar. No viaduto ou em outro lugar ele amarrava uma corrente fina
com um cadeado a sua perna. Ninguém nunca tentou roubá-lo, mas sabe-se lá.
Nunca
disse para ninguém seu nome de batismo. Se auto intitulou MacBeth. Claro, quem
ali poderia ter lido ou assistido a peça de William Shakespeare “Tragédia
Macbeth”? Ele não era afeminado. Nada disto. Mas achou interessante se chamar
assim. Nunca quis lembrar seu passado. Ele era página virada em sua vida.
Recordar o que foi não ia ajudar. Gostava de sua nova vida de sem teto. Não
devia obrigação a ninguém. Fazia seus próprios horários e mesmo enfrentando
dificuldades nas ruas da solidão, ela se sentia feliz. Muito mais quando...
Melhor esquecer. De vez em quando a soldadesca dava-lhe uns tapas, uns chutes e
o levavam preso só para roubar o pouco que ganhava. Mas MacBeth não reclamava.
Quem escolhe uma estrada para seguir não tem jeito. Mudar em certa parte do
caminho é retroceder.
No dia
seguinte apesar do frio MacBeth voltou às lides de catador. Uma chuvinha miúda
caía molhando tudo pela frente. Passou próximo a um restaurante de um real.
Eram dez da manhã. Eles só abriam as onze. Esperou calmamente. Amarrou sua
carrocinha no ferro de uma placa de estacionamento proibido. Alguns conhecidos
já estavam na fila. Calado ele ficou só observando todos. Conversava pouco. Só
o necessário. Foi então que ele a viu. Incrível! Continuava linda! Seu coração
bateu forte. – Deus! Não deixe que ela me reconheça. Ela passou com um jovem de
braços dados. Sorria. Ele sabia que era o mais lindo sorriso que já tinha
visto. Ela nem olhou para os lados. Ele abaixou a cabeça. Sentiu o velho
perfume J’Adore de Dior que ele sempre usava. Ficou inebriado. Que saudades!
Malditas saudades!
Não era
seu dia. Quando chegou na hora de pagar viu que não tinha um centavo. Tentou
conversar com alguns na fila. Todos diziam não poder ajudar. A fome corria
solta. Mas e daí? Não era a primeira vez. Pegou sua carrocinha e foi em direção
ao Butantã. Atravessou a ponte da Cidade Universitária. Olhou lá embaixo a
Marginal Pinheiros. Quantos carros. Milhares deles. Quantas vezes ele passou
por ali com seu velho Mercedes e seu bom amigo e chofer o Juventino. Ao se
aproximar da entrada da USP avistou um saco que parecia estar cheio de latinhas
de cerveja. Chegou primeiro e guardou no fundo de sua carrocinha. O dia inteiro
não rendeu muito. A fome apertava mais e mais. Passou em frente ao Bar do
Sacristão. Parou. Olhou para dentro. Zé Ruela o viu. Pegou dois pão velhos com
manteiga e trouxe para ele. Bom amigo o Zé Ruela. Se o patrão dele visse o
colocava na rua.
Chegou ao
seu barraco por volta das oito da noite. Mal cumprimentou um e outro. Estava
tão cansado que dormiu logo. Nem fez seu café que sempre fazia. Levantou cedo.
Separou o lixo reciclado, tinha alguns fios de cobre de dentro da sacola com as
latas vazias de cerveja ele encontrou um saquinho pequeno com vinte cartelas de
jogos de loteria. Jogou-os de lado. Pegou sua carrocinha e colocou o que
poderia vender. Seu Pedreiro pagou a ele onze reais. Tudo bem. Já dava para
comer alguns dias. À noite em seu barraco olhou novamente as cartelas. Pegou
três. Colocou no bolso. Ia conferir. Depois dar risadas. Claro que quem as fez
já tinha conferido. Eram de três meses atrás. De novo levantou cedo. Pé na
estrada.
Na Praça Pan-americana
viu uma lotérica. Entrou sob os olhares raivosos das moças atendentes. Ele
tomava banho duas vezes por semana. Mais não dava. Usava um balde que enchia de
água na porta do Barraco do Jacinto. Conferiu o primeiro. Não estava
entendendo. O danado do bilhete marcava os seis pontos. O numero havia ganhado
sozinho. O valor? Oitenta e cinco milhões de reais. Fechou os olhos. Saiu dali
calado. E agora? O que devia fazer? Porque o dono jogou os bilhetes fora? Claro
ele sabia que ninguém poderia provar que ele tinha roubado os bilhetes. Era
entregar e receber. Nem foi trabalhar aquele dia. Passou a noite acordado. Não
teve jeito. O passado batia com força na sua mente. Maldito passado.
MacBeth
sabia que era um empresário de sucesso. Marcondes seu sócio era seu amigo de infância.
Estava noivo de Maria Rita a quem amava profundamente. O casamento seria em
menos de um mês quando ele foi preso. Por quê? Marcondes o acusou de roubo.
Roubar o que? A própria firma. Eu? Nunca faria isto Marcondes. Claro ficou lá
só uma semana. Quando saiu viu que o prédio que tinham a fábrica e o escritório
tinha sido queimado. Não sobrou nada. O seguro disse que havia cinco meses que
não se pagava nada. Marcondes fez tudo premeditado.
Procurou
Maria Rita. Ela o desprezou. Morava sozinho em um apartamento nos jardins.
Porta trancada. Uma placa escrita – A disposição da justiça. Foi ao Banco
Bradesco. Sua conta zerada. No Itaú a mesma coisa. No Santander só duzentos
reais de saldo. Procurou Marco Antonio seu amigo e ele tinha mudado para a
Europa. Ficou desesperado. Prometeu matar Marcondes. Arrumou uma faca simples.
Foi até a casa dele. Tinha sumido também. Roubou tudo dele e foi embora. Sentou
em baixo do Viaduto Santa Filomena e chorou. Chorou muito. Uma mão em seu
ombro. Virou. O rosto de uma mulher. Feia, desdentada. Desmemoriada. Suja e
demente. Disse a ele para acreditar em Deus. Ele tudo resolve. Ele riu. Deus?
Que Deus?
Largou
tudo que tinha, pois agora não tinha nada. Resolveu mudar de vida. Porque não?
Nunca foi um sem teto, mas nunca é tarde para começar. Levou Santinha a
desmemoriada consigo a procurar comida. Ela ria dele e ela sim é que o ensinou
os macetes dos sem tetos. Aprendeu. Deu duro. Sempre trabalhou. Era
inteligente, sabia como ninguém dirigir e coordenar uma fábrica. Agora era
diferente. Era saber matar à fome, o frio, a falta de um teto. Santinha morreu
seis meses depois. Uma forte pneumonia. Correu com ela no Pronto socorro do
Jaçanã. O socorro foi tarde demais. Afinal era negra, desmemoriada, suja e com
um cheiro horrível. Ninguém ligou. Foi enterrada como indigente. Ele foi ao
enterro e chorou.
Entrou
na Caixa Econômica Federal na Rua João Casagrande. Os vigilantes não o deixaram
entrar. Ele mostrou o bilhete. Um deles pediu para ver. Ele não deixou. Sabia o
que ia acontecer. O Gerente Sênior viu a algazarra. Mandou trazê-lo até sua
presença. Conferiu o bilhete. Deu a ele um grande sorriso. Onde achou o
bilhete? Não achei. Comprei e esqueci-me de conferir. O gerente tentou um golpe
que não deu certo. Começou uma lenga-lenga de como ele devia administrar o
dinheiro. Ele foi enfático. Abra duas poupanças. Em uma deixe um milhão, na
outra coloque os 84 milhões restantes. O gerente tentou negociar. – Faça o que
estou dizendo. Colocou no bolso dois mil reais. Pegou sua carrocinha. O
primeiro sem teto que viu deu para ele. Ele saiu rindo a toa.
Passaram-se dois anos. MacBeth abriu novamente sua fábrica de parafusos
inoxidáveis para aviões. Exportava para a Europa. Um dia Dona Mercês sua
secretária disse que tinha um tal de Marcondes querendo falar com ele. Mandou-o
esperar. Pediu que dois vigilantes subissem ao seu escritório. Marcondes
entrou. Quando o viu teve pena. Era um rato em forma de gente. Magro, tossindo
e pedindo perdão. Não queria dinheiro só o seu perdão. Ele não sabia o que
dizer. Mandou Dona Mercês dar a ele vinte mil reais e pediu a ele para sumir de
sua vida. Ele agradeceu e sumiu. Dizem que a vingança é um prato que se come
frio. Mas ele não queria vingança.
Uma
tarde jantava no Baby Beef Rubaiyat na Alameda Santos. Foi atendida por uma
garçonete. Quando ela o viu e ele olhou
para ela não havia dúvida, era Maria Rita. Não a desprezou. A tratou como uma
garçonete. Ele não sabia o que fazer. Quando
saiu deixou uma boa gorjeta. Viu que ela chorava. Ele ainda a amava, mas não
havia volta. Resolveu dar uma festa. Chamou todos seus amigos mendigos e sem
tetos. Alugou um salão. Chamou oito seguranças. Contratou o melhor bufê da cidade.
Todos se divertiam. Alguém contou para a policia que a droga corria solta.
Cercaram o Bufê. Uma correria dos sem tetos. A policia abriu fogo. Ele sentiu
algum queimando em seu peito. Perdeu o ar. Caiu ao chão. Estava morto.
Marcondes
na esquina ria baixinho. Já tinha feito seus planos. Ainda guardava o contrato
de sócio antigo. Uma pequena falsificação e tudo que era dele passaria em seu
nome. Dito e feito. Quatro meses depois assumiu. Mandou dona Mercês embora.
Contratou uma secretária nova, gostosa e sapeca. O tipo que precisava para
divertir em seu escritório. Na semana seguinte a Senhorita Valenska disse que
tinha uma moça querendo falar com ele. Ficou intrigado. Mandou entrar. Maria
Rita entrou atirando. Deu nele seis tiros. Morreu na hora. Jogou a arma no
chão. Saiu correndo. Filho da puta, dizia. Recebeu o que merecia. Na porta do
prédio foi cercada pela policia. Desobedeceu a ordem de parar. Bastaram três
tiros e Maria Rita caiu no asfalto molhado. Chovia fino. Um frio enorme. Ele
estava por ali. Abraçou Maria Rita e saíram andando pelas nuvens que encobriam
o céu. Passos pequenos, calmos e se dirigiram para o outro lado da vida. O que
aconteceu depois só o céu pode contar.
Que Feliz Destino o Meu MOTE
«Que feliz destino o meu
Desde a hora em que te vi;
Julgo até que estou no céu
Quando estou ao pé de ti.»
«Que feliz destino o meu
Desde a hora em que te vi;
Julgo até que estou no céu
Quando estou ao pé de ti.»
GLOSAS
Se Deus te deu, com certeza,
Tanta luz, tanta pureza,
P'rò meu destino ser teu,
Deu-me tudo quanto eu queria
E nem tanto eu merecia...
Que feliz destino o meu!
Às vezes até suponho
Que vejo através dum sonho
Um mundo onde não vivi.
Porque não vivi outrora
A vida que vivo agora
Desde a hora em que te vi.
Sofro enquanto não te veja
Ao meu lado na igreja,
Envolta num lindo véu.
Ver então que te pertenço,
Oh! Meu Deus, quando assim penso,
Julgo até que 'estou no céu.
É no teu olhar tão puro
Que vou lendo o meu futuro,
Pois o passado esqueci;
E fico recompensado
Da perda desse passado
Quando estou ao pé de ti.
António Aleixo.
Se Deus te deu, com certeza,
Tanta luz, tanta pureza,
P'rò meu destino ser teu,
Deu-me tudo quanto eu queria
E nem tanto eu merecia...
Que feliz destino o meu!
Às vezes até suponho
Que vejo através dum sonho
Um mundo onde não vivi.
Porque não vivi outrora
A vida que vivo agora
Desde a hora em que te vi.
Sofro enquanto não te veja
Ao meu lado na igreja,
Envolta num lindo véu.
Ver então que te pertenço,
Oh! Meu Deus, quando assim penso,
Julgo até que 'estou no céu.
É no teu olhar tão puro
Que vou lendo o meu futuro,
Pois o passado esqueci;
E fico recompensado
Da perda desse passado
Quando estou ao pé de ti.
António Aleixo.
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