Amor é fogo que
arde sem se ver;
É ferida que dói e não se sente;
É um contentamento descontente;
É dor que desatina sem doer.
É um não querer mais que bem querer;
É um andar solitário entre a gente;
É nunca contentar-se de contente;
É um cuidar que se ganha em se perder.
É querer estar preso por vontade
É servir a quem vence o vencedor,
É ter com quem nos mata lealdade.
Mas como causar pode seu favor
Nos corações humana amizade;
Se tão contrário a si é o mesmo amor?
O céu por testemunha.
O crime do Padre Lourenço.
Faz tempo.
Muito. Quem me contou esta história acho que não está mais entre nós. Quando o
conheci tinha mais de oitenta anos. Bebericava uma cerveja no bar do Toninho,
sozinho e pensando na vida. Ele chegou e sentou sem pedir. - Mais um copo
pediu! Era um "Velho" simpático. Cara lisa, cabelos brancos, magro
feito um palito. Simpático. Não disse nada. – Mais um copo falei para o
Toninho. Ficamos ali jogando conversa fora. Passava de nove da noite e ele
entrou no assunto do Padre Lourenço. Contou-me toda a história. Triste. Muito.
Podem até dizer que conhecem centenas de outras iguais. Concordo. Mas aquele
"Velho" me contou de uma maneira tal que me emocionou. Olhe para
dizer a verdade fui para a pensão onde estava há alguns meses e sentado na cama
fiquei acordado por horas pensando. Não tinha tantos motivos para isto. Podem
criticar. Paciência.
O Padre
Lourenço era de família pobre. Sempre teve vontade de ser padre. Seu sonho era
servir a Deus Nosso Senhor. Quando fez três anos mal falava e dizia a sua mãe
sua vocação. Ela ria. Não era incrédula nada disto, mas pouco frequentava a
igreja. Rezava com ele todas as noites. Lourenço com quatro anos não perdia uma
missa. Logo fez amizade com todos na igreja. O Padre Nonato, já velhinho tinha
por ele um amor enorme. Com cinco anos ajudava na Missa e orações vespertinas.
Cantava lindamente o Kyrie Eleison, todos gostavam de ouvi-lo cantar a Oração
de São Francisco de Assis. Tornou-se na igreja um jovem que além de exemplo era
um dos melhores alunos do grupo escolar que estudava.
Aos oito
era conhecido por todos os católicos da cidade. Um menino de virtude que dava
exemplo para todos os outros. As mães não cansavam de dizer aos seus filhos –
Faça como o Lourenço, ele sim, é muito obediente e temente a Deus. Aos dez
Lourenço foi para o seminário. Como seminarista estudava como nunca. Dominava
Filosofia e Teologia como ninguém. Ajudava a todos os colegas, era bem quisto
pelos padres dirigentes, e seu sonho de ser um sacerdote sobrepunha a todas as
dificuldades que os outros sempre reclamavam com ele. Não era uma vida fácil.
Sempre em oração pela manhã, missa diária, aulas e serviços comuns ele
participava com alegria e prazer. As atividades pastorais era motivo de alegria
para ele. Sua dimensão comunitária que correspondia à convivência, relações humano-afetivas
e caridade eram motivo de orgulho por todos os seus amigos. Todos diziam que
ele seriam um grande sacerdote. Quem sabe um futuro bispo?
Sua
ordenação aconteceu quando fez dezenove anos. Sua mãe estava presente e muitos
parentes e amigos. A igreja do seminário estava totalmente cheia. A Santa Missa
foi celebrada pelo Padre Nonato que fez questão de estar presente. Após o
término Lourenço foi chamado a frente de todos e apresentado à assembleia que
estava na primeira fileira da igreja. Foi questionado quanto a sua fé, seu
trabalho, sua obra que iria realizar. Depois prometeu desempenhar com
diligência suas funções ado sacerdócio, respeitando e obedecendo aos seus
superiores religiosos. Prostrou-se diante do altar e enquanto rezaram iam
cantando a Ladainha de Todos os Santos. Em silencio, foi oferecido à oração
consecratória, e Lourenço foi investido com uma estola e uma casula. Crismado
foi apresentado com o cálice sagrado e a patena. Uma cerimonia linda. Lourenço
agora o Padre Lourenço não cabia em si de contente. Ia servir a Deus conforme
era seu desejo.
Apresentou-se uma semana depois a
Vossa Excelência o Bispo Bonifácio. Beijou seu anel pastoral, fez uma
genuflexão diante da cruz pastoral. O Bispo Bonifácio estava impressionado. Em
todo seu prelado nunca tinha visto um padre como O Padre Lourenço. Achou que
devia mandá-lo para uma paroquia em uma pequena cidade onde o padre atual
estava nas últimas no hospital. Interessante. Era o oitavo padre que ficava
doente e depois de dois ou três meses internado morria. Tinha de haver uma
explicação. Contou tudo ao Padre Lourenço. Disse que ele devia descobrir o
motivo desta mortandade. Padre Lourenço fechou os olhos e rezou. Pediu a Deus
que lhe mostrasse o caminho. Despediu de sua Excelência e partiu para Santa Fé.
Dois meses
depois os jornais de todo o país estampavam em manchetes garrafais. Padre
Lourenço da cidade de Santa Fé matou a pauladas uma menina de dezesseis anos.
Lavy Antares uma jovem querida por toda a cidade foi vitima criminosa, sem
explicação de um padre que todos diziam ser um grande seguidor de cristo. As
autoridades episcopais não acreditavam no acontecido. Estavam estarrecidos. A
mãe do Padre Lourenço foi internada as pressas quando soube e muitos parentes
boquiabertos. Ninguém sabia explicar o motivo. Encontraram o padre sentado em
uma cadeira, um porrete na mão cheio de sangue, a menina toda esfolada e parte
do crânio aberto pelas porretadas. O padre não falou nada e até hoje ainda
preso não explica o que fez. Ficou mudo.
Um repórter
foi até Santa Fé e todos eram unânimes que o padre era uma flor de pessoa. Um
passado impecável. Amável, tratava a todos com carinho, a igreja depois de sua
chegada ficava sempre cheia quando das missas, pois ele celebrava com uma
maneira tão linda que cativava a todos. Um crescimento quantitativo de fieis
aconteceu. Organizou as Filhas de Maria, deu força ao Grupo Escoteiro instalado
em uma sala da paróquia, movimentou fieis para organizarem melhor o Catecismo
que não tinha boa presença. Visitava diariamente fieis ou não que estivesse
doente. Não tinha hora do dia ou da noite que era chamado e atendia sorrindo.
Ninguém entendera bem o que aconteceu. Nenhum fiel nenhum morador tinha uma
explicação.
Lavy era católica praticante como sua mãe e
seu pai. Não perdia uma missa. Ficava de olhos fixos nos santos que adornavam o
altar e balançava a cabeça para frente e para trás como a entender a palavra do
padre. Diziam que ela quando a missa terminava pegava uma vassoura e varria
toda a igreja. Quase não saia de lá. Desde pequena que todos a consideravam uma
devota e para alguns uma santa. O repórter ficou uma semana em Santa Fé. Não
descobriu nada. Porque um padre, considerado modelo matou uma menina indefesa?
O que houve? Possessão? Obsessão? Tomado pelo Demônio? Difícil saber. Santa Fé
era uma cidade pacata, quase todos os habitantes católicos e só uma Igreja Presbiteriana
mesmo assim tinha poucos fieis. O repórter desistiu. Um mês, dois e no quarto
não havia mais manchetes, o publico perdeu o interesse.
Naquela quinta chuvosa, sentado na sala
paroquial o Bispo Bonifácio tentava pensar em outros temas em outros assuntos,
mas não conseguia. O Crime do Padre Lourenço não saia de sua mente. Tentava uma
explicação pelo acontecido. Não tinha. Lembrava a confissão do Padre Lourenço.
Fora visitá-lo na prisão. Não sorriu uma única vez. Quase não falou a não ser
quando confessava. Quem poderia imaginar? Seria verdade ou mentira do Padre
Lourenço? E que adiantava agora? Lembrava palavra por palavra o que ele disse. Nunca
ninguém saberia, pois o que ouviu era segredo de confessionário. Tinha que
guardar para sí tudo o que ele disse. Sabia que ele nunca contaria para
ninguém. Não iria ajudar a igreja em nada. Para dizer a verdade seria melhor
que ele não tivesse dito nada. Pelo menos poderia dormir em paz o que agora não
conseguia.
- Excelência,
começou Padre Lourenço. Perdoe-me se puderes. Pequei contra Deus e contra os
homens. Aceito minha penitencia de morrer aqui nesta prisão. Sei que não tenho
futuro e meu passado não existe mais. Todos me conhecem como o Padre assassino.
Sou mesmo. Piedade? Não quero e não mereço. Sabe excelência, os outros padres
que morreram quem sabe poderão compreender melhor. Claro também não irão me
perdoar. Mas olhe não quero o perdão
deles. Não quero porque não mereço mesmo. Ninguém iria acreditar que ela era
possuída. Nunca o demonstrou para ninguém. Se não tivesse feito o que fiz seria
uma mortandade de padres naquela paroquia. Como? Simples Excelência. Lavy
Antares tinha o rosto de um anjo. Quem a visse rezando nas missa e em orações
poderia dizer que ela era uma santa, pois nem namorado tinha. Dizia para sua
mãe que quando fizesse dezoito anos iria entrar em um convento.
Sabe
Excelência, quando ela me procurou tive uma enorme simpatia pela menina.
Educada, prestativa, e olhe só fiquei sabendo que era surda e muda dois dias
depois pelo sacristão Leôncio. Muda e surda? Risos. Não era não Excelência.
Enganou a muita gente. Ninguém acreditaria no que ela fazia com os padres na
paróquia. Eu fui surpreendido cinco dias depois que assumi a paróquia. Estava
em meu quarto quando ela entrou. Levei um susto enorme. Levantei da cama e pedi
para ela me esperar na sacristia. Excelência precisava de ver o rosto dela.
Afogueado, totalmente alterada e sorrindo sorrateiramente. Aproximou-se de mim
e segurou meu membro com força e me beijou. Deus meu! O que era isto? Sai
correndo e ela rindo atrás. Agarrou-me pelo ombro e me deu uma dentada na nuca.
Sangrou. Achei que ela estava louca. Olhei em seus olhos e foi então que vi o
Demônio. Sim Excelência. O Demônio.
Saí pela rua
transtornado e olhei para trás e a vi de olhos baixos, indo para sua casa. Não
sabia o que fazer. Não tinha a mínima ideia qual rumo devia tomar. Entrei
novamente na igreja e rezei. Rezei muito, pedi a Deus que me ajudasse.
Mostrasse-me o caminho que deveria seguir. A noite chegou. Rezei a missa das
seis tremendo. Não sei se os fieis observaram alguma coisa. Dormir cheio de
temor. Na missa da manhã lá estava ela. De olhos baixos rezando. Pedi a Deus
por ela. Que a protegesse. A missa acabou e fui me trocar. Prometi a dona
Joventina de visitar seu marido doente. Ela tinha insistido. Não deu. Ela a
maldita entrou no meu quarto. Trancou a porta a chave. Tirou a roupa. Ficou nua
em minha frente. Rangeu os dentes e falou com voz roca. “Padre maldito, agora
você vai-me foder!” Pulou em cima de mim. Uma força descomunal. Rasgou minha
batina, rasgou minhas roupas íntimas. Jogou-me na cama e sentou em mim.
Incrível Excelência. Não era ela, era
o Demônio. Tremendo perguntei a ele o porquê de tudo aquilo. Ela ou ele, me
forçando a entrar nela gritava e rosnava. Malditos padres, odeio voces todos!
Nesta paróquia não vai ficar um vivo. Mordeu-me no pescoço. Senti uma dor
imensa e logo o local passou a coçar. Ela ria. Um riso de gente morta. Ela
fedia. Um mau cheiro incrível. Tentei tudo para me desvencilhar e não consegui.
Meu membro não subia. Não tinha como. Ela forçava e ele saia. Desistiu e vestiu
suas roupas. Abriu a porta e disse – Sua vez chegou. Vai morrer em breve
maldito padre de merda! – Quem acreditaria que a menina estava sendo possuída
pelo Demônio? Na presença dos outros era uma santa. Fui de novo a igreja e
chorei. Pedi a todos os santos, pedi a Deus. Ajude-me!
Sabe
excelência, tinha resolvido procurá-lo. Não sabia se ia acreditar em mim. Mas a
decisão estava tomada. Avisei ao Sacristão que ficaria dois dias fora. Fui
fazer a mala. Ela entrou. Maldita! Logo ficou nua. Gemendo disse que se não a
comesse gritaria que eu a estava violentando. Deu-me um tremendo murro na testa
que cai de boca no chão. Foram vários chutes. Quebrou dois dentes da minha
boca. Ela sangrava. Agarrou meu membro e apertou. Doeu muito. Gritei de dor. Ela
ria. Soltou-me e disse – Deite, agora ou me fode ou eu te mato! Que me matasse
Excelência preferia morrer. Mas uma voz me disse que eu tinha de acabar com
aquilo. Outro viria mais outro e outro e nunca iria acabar. A menina possuída
pelo Demônio seria sempre a virgem da cidade. Ninguém acreditaria em nenhuma
historia que ela era possuída.
Saltei da
cama. Ao lado da janela tinha um mourão que usava como tranca. Bati na sua
cabeça com força. Fiquei possesso. Bati mais e mais. Vi o sangue jorrando.
Sentei na cama. Ela estrebuchava no chão. Gemia e dizia com voz rouca. Matou
essa, mas volto em outro filho da puta! Você não perde por esperar. Morreu e
não ouvi mais nada. O sacristão vendo o barulho em meu quarto veio correndo.
Abriu a porta e me viu sentado na cadeira todo ensanguentado com o porrete, ou
melhor, o mourão e a menina esticada no chão e morta. Saiu correndo e gritando
que o padre matou a virgem. Muito vieram. Tentaram me linchar. Achei que
deviam. Mas a policia chegou logo. Transferiram-me de cidade. Agora estou aqui
neste presidio. Fui julgado e condenado há trinta anos. Quero cumprir todos os
dias. Nunca vou pedir para sair antes.
O Bispo
Bonifácio levantou da cadeira que estava na Sala Paroquial. Não dava mais para
pensar e raciocinar direito. Não julgava mais o Padre Lourenço. Deus sabe o que
faz. Sabia que pelo menos uma vez ao ano iria visitar o Padre Lourenço. Um
homem que como padre seria o maior exemplo que ele conheceu. Nada aconteceu e
sua vida virou do lado avesso. Nunca mais repórteres o procuraram. Passaram-se
alguns anos quando a policia invadiu o Presidio durante uma revolta, mataram
mais de cem detentos. Soube que o Padre Lourenço foi um dos primeiros. Tentou
segurar os policiais dizendo a eles que não fizessem nada. Iriam se entregar.
Recebeu uma bala no estomago e outra na cabeça. Morreu na hora. Se foi para ao
céu o Bispo não sabia. Rezou por ele. Rezou também pela alma de Lavy Antares.
Uma menina que não teve culpa.
O
"Velho" que me contava a história parou de repente. Seus olhos
ficaram virados. Me olhou dentro dos meus e disse: - O Padre Lourenço era meu
filho. Minha mulher ficou louca. Morreu em um hospício. Não tenho mais família.
Ando aqui e ali e procuro paz. Não encontro. Que Deus tenha piedade da minha
alma! Levantou e foi saindo. Na porta do bar virou e completou: - e De Celma
minha mulher e do meu filho Lourenço. Sumiu na rua escura. Nunca mais o vi.
Soneto de
Fidelidade
De tudo ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento.
Quero vivê-lo em cada vão momento
E em seu louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento
E assim, quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama
Eu possa me dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure.
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