“Nem Jesus Cristo, quando veio a Terra, se propôs resolver
o problema particular de alguém. Ele se limitou a nos ensinar o caminho, que
necessitamos palmilhar por nós mesmos”. (Frases e Pensamentos de Chico
Xavier).
O ESQUIFE DE
MARTINHO BOA MORTE
Acordou de
um sono profundo. Olhou em volta e viu tudo escuro. Não lembrava onde estava,
quem era e porque tinha ido parar ali. Forçou a tampa do esquife e conseguiu
sair facilmente. Não teve medo. Nem sabia que tinha sido enterrado vivo. Viu um
pequeno vão com claridade e tentou ir até lá. Passagem estreita. Não desistiu.
Achou um osso jogado em um canto. Usou-o como faca. Dois dias depois conseguiu
uma abertura e deu para sair.
Era
noite. Horas não sabia. Tudo escuro mais viu que estava em uma grande necrópole
com muitos jazigos, mausoléus, sepulturas e não soube por que, mas ele se achou
em casa. Gostava daquele lugar. Achou um portão trancado. Passou fácil por ele.
Como passou também não sabia. Não tinha aparência de espectro, tinha certeza
que era de carne e osso. Deu até vontade de soltar sua moafa mesmo sabendo que
não tinha bebido nada. Não estava com fome, também não tinha sede.
Seguiu
sem rumo na rua escura e abandonada. Viu que estava vestido com um terno
apertado e sem sapatos. Só meias. Seus pés não doíam. Nada no seu corpo doía.
Ele se sentia como uma pluma no vento. Andava como se estivesse volitando. Não
encontrou ninguém, não viu ninguém. Viu ao longe umas luzes. Um farol foi de
encontro ao seu rosto. O veículo rodava em grande velocidade. Freou em uma
curva e parou. Desceram dois homens. Não foram ao encontro dele. Foi então que
viu uma jovem na calçada e descobriu quem era a presa.
Eles
agarraram a moça, subjugando-a. Ela gritava, esperneava, pedia pelo amor de
Deus que a soltassem. Eles riam desbragadamente. Tiravam sua roupa e forçavam a
ficar de quatro. Ele foi até lá, pediu
para soltarem-na. Eles riram e pronunciaram palavras de baixo calão. Ele se
aproximou mais, recebeu quatro tiros no peito. Ele não sentiu nada. As balas
entraram e saíram do outro lado. Ele achou estranho. Os homens o olharam
novamente e mais seis tiros, ele deu um tremendo soco em um e o outro pegou
pelo cabelo e o jogou do outro lado do muro do cemitério.
A moça
estava atônita. Perplexa. Queria agradecer ao seu salvador, mas não sabia como.
Correu. Transformou-se em uma gazela espantada. Virou uma esquina, outra e mais
outra. Não olhava para traz. Chegou a sua casa, pequena, humilde e não
conseguia abrir a porta. Ela se abriu. O viu do outro lado dentro de sua casa.
Fora ele quem abrira para ela. Um mistério. Quem seria? Um falecido? Seu
fantasma? – Ele a olhava e sorria bondosamente. Queria falar, mas não
conseguia.
Ela viu seu irmão de dez
anos dormindo na poltrona. Ele sempre a esperava ali. Eram uma família de dois.
O único emprego que conseguira foi de atendente e auxiliar de limpeza em um
prédio próximo a sua casa. Horário desigual. Virava a noite. Terminando voltava
mais cedo para casa. Dava para o sustento. Olhou para traz e viu que ele ainda
estava lá. Terno amarrotado, sem sapatos, cabelos revoltos. Não era bonito, mas
podia-se dizer que tinha um lindo porte. Pena que estava meio sujo e seu corpo
soltava um odor diferente, nauseabundo.
Agradeceu
a ele de novo e disse que precisava dormir. Ele sorria. Entendeu. Não falou
nada. Ela fechou a porta. Olhou pela janela e não o viu. Dormiu pensando em
tudo. Não entendia nada. Quem era? De onde tinha vindo? Claro, estava cortando
caminho e passando numa rua paralela ao cemitério, mas fazia isto todas as
noites, não tinha medo. Acordou pela manhã. Seu irmão já tinha ido para a
escola. Uma rotina que ela havia ensinado. Limpou a casa, iniciou o almoço.
Simples. Seu dinheiro era pouco.
Abriu a
porta para colocar o lixo e o viu. Ele estava no passeio, em pé e olhando para
ela e sorrindo. Assustou. Foi até ele e perguntou se ele não lembrava onde
morava. Ele não respondeu. Continuava olhando para ela e sorrindo. Deu para ela
uma sacola que estava encostada em um poste. Ele olhou de soslaio. Paes, doce,
carne, muitos víveres. Uma sacola pesada. Agradeceu. Recusar na penúria que se
encontrava era demais.
Deixou-o ali e entrou. Viu que uma sacolinha tinha grande soma em
dinheiro. Correu para a rua. Ele tinha ido embora. Ficou receosa. Quem seria? O
que queria? Seu irmão chegou e ambos fizeram uma lauta refeição. Quantos anos
isto não acontecia. Escondeu o dinheiro que ele tinha dado. Iria devolver. A
noite partiu para o seu trabalho. Todos haviam saído menos seu Honório que
atendia na recepção. Começou o batente. Ela o viu de novo. Ajudava. Limpava em
uma rapidez incrível. Parecia ser um daqueles super herói da historia em
quadrinhos.
Deus
do céu! Pensou. Em que tinha se metido? Quem era ele? Pelo jeito uma alma do
outro mundo! Só podia ser. Rezou a Jesus que era seu amigo naquelas horas.
Pediu tudo. Rogou aos santos protetores. Abriu os olhos e ele estava lá. Agora
o salão que fazia limpeza estava um brinco. Nunca havia feito uma limpeza como
aquela. Ele sempre em pé sorrindo. O mesmo cabelo revolto, o mesmo terno as
mesas meias azuis sem sapato.
Ele não sabia o que estava acontecendo.
Gostou da jovem, achou que a conhecia. Queria ajudar. Tentava conversar,
explicar, não conseguia. Achou estranho quando os bandidos atiraram e ele não
sentiu nada. Mas se fosse um espírito do outro mundo como se explicaria que ele
pudesse tocar? Sentir, segurar? E agora, como se explica que ele consegue tudo?
Virou um Super Homem? Caramba! Uma incógnita.
O dia
amanhecendo ela retornando ele acompanhando. Ela aceitou sua companhia. Tentava
entabular uma conversa. Mas era monólogo, só ela falava ele só sorria. Virou
rotina. Uma semana, duas, resolveu ir até a delegacia explicar o que estava
acontecendo. O delegado riu. Disse que ela precisava de se tratar. Ele estava
junto ao delegado. Sorrindo. Levantou o telefone. O delegado ficou em pé
assustado. Ele soltou o telefone. O delegado gritou. - Sai de mim satanás!
Ela foi
embora com o delegado desconjurando. Ele ao seu lado. Sorrindo. Sem falar nada.
Chegou a casa, diversas sacolas, uma TV nova, muitas coisas. Seu irmão disse
que vieram entregar. Não tinha nota fiscal, nada que identificasse quem foi que
mandou. Vou morrer se continuar assim. Ajuda-me Jesus Cristo! Deus seja
louvado. Abriu os olhos, ele estava na porta sorrindo. Acho que vou enlouquecer
pensou.
Ele viu
que ela estava assustada. Preciso pensar. Voltou ao cemitério, lá era mais
tranquilo. Entrou de novo no seu jazigo. Deitou em seu caixão e fechou a tampa.
Ficou ali um bom tempo. Não se lembrava de nada. Seu nome, de onde veio e para
onde ia. Nada. Uma espessa nuvem branca em seu cérebro. Tentou dormir como todo
mundo. Não conseguiu. Ouviu um barulho, saiu correndo do caixão a procura. Uma
luz escarlate num jazido ao lado do seu. Conseguiu entrar. Tentavam abrir um
caixão. Batiam de dentro para fora. Ele ajudou. Abriu. Viu uma linda jovem
deitada com um vestido de noiva. Idêntica a jovem que ele estava ajudando.
Passaram-se cinco dias. Ela estava mais calma. Ele não tinha mais
aparecido. Queria devolver tudo que deu. Não sabia para quem. O jeito é usar.
Paciência. Quando passava pelo muro do cemitério, o viu de novo. Acompanhado de
uma moça linda, chegou mais perto. Era ela! Impossível. Ela estava ali de carne
e osso. Não podia ter morrido. A moça de branco sorriu. Acenou. Ela reconheceu
sua mãe. Mais nova. Tinha morrido com 75 anos. De coração. Fumava muito.
Tentou
abraçar sua mãe. Não conseguiu. Ele segurou na sua mão. Ela sentiu, mas com sua
mãe nada. Foram juntos para sua casa. Ela sentou na poltrona, ele não, sempre
em pé sorrindo. Tentou conversar com sua mãe. Nada. Ela mostrou uma parede. Não
viu nada. Sentiu que não havia tijolos por trás do reboco. Quebrou com um
martelo. Viu uma caixa. Uma cruz de madeira pequena, um sapo pequeno empalhado,
dois dentes de ouro. Fez sinal para jogar no fogo. Ela assim o fez. Ela sorriu
e desapareceu.
Ele
viu tudo aquilo. Não entendeu. Saiu rápido e foi até ao esquife dela, no jazigo
que estava. Abriu. Pedaços de ossos, dentes, uma cruz de madeira, e um sapo
empalhado. Achou que Ela agora iria descansar. Imaginou para onde teria ido.
Nada. Sua mente não concatenava. Voltou à casa da jovem. Estava fechada.
Entrou. Ninguém. Vazia. Ela, seu irmão e móveis haviam desaparecido. Não
entendeu nada. Ela gostava dela, era a única que conhecia e que o via como
alguém e não um defunto.
Passaram-se dois meses. Ela não viu mais o homem e nem sua mãe. Tinha
medo de ficar ali. Buscou suas últimas economias no banco e mudaria para outra
cidade. Assustou. Uma enorme quantia estava depositada em seu nome. Procurou o
gerente, confirmaram. Foi depositado para ela. Era dela. Poderia fazer o que
quiser com o dinheiro. Ninguém lembrava quem depositou. Foi uma ordem de
pagamento feita em um país distante.
Ela
voltou para sua cidade natal. Comprou uma bela casa. Um carro e montou uma loja
de roupas. Seu irmão sorria. Boas roupas, bom colégio. Suas vidas se
transformaram. Era uma tarde de domingo, Foram a um parque de diversões. Ele
ria, ela ria pipocas, doces, dinheiro à vontade. Acabaram-se as dificuldades,
agora iriam viver o que não tinham vivido. Sentiu um estranho a olhando.
Virou-se. Era ele. Meu Deus! De novo. Não. Ajude-me Jesus amado.
Ele se
aproximou. A cumprimentou. Ela ouviu. Se for ele agora falava. Apresentou-se.
Eduardo Palhares Sacramento. Juiz de Direito nesta cidade. Ela viu que eram
sósias. Não é possível! Mas aquele era de verdade. Estava de roupa esporte.
Lindo, belo, um sorriso encantador. Foi galante. Convites. Jantares. Casamento.
Seu irmão gostou do novo cunhado.
Estavam
juntos há oito anos. Felizes. Sem filhos. Tentava de todo jeito. Eles faziam
sexo sentado, deitado, ela por cima, de quatro, levou ela para o bosque, no
cinema, tentaram de todo jeito. Nada. Agora estava fazendo uma fertilização.
Não sabia o nome direito. Todos na cidade gostavam do casal. Eram convidados
para festas, recepções e muitos queiram como padrinhos para casamentos ou
batizados.
Recebeu
um telefonema. Gelou. Ele reagira a um assalto e tinha sido morto com dois
tiros. Desespero. Nunca pensou que isto pudesse acontecer. A cidade em peso
compareceu nas suas exéquias. Muitos choravam. Ela voltou para casa. A vida
continua dizia ela. Tudo tem explicação. A morte é um mistério, mas um dia ela
iria passar por isto.
Acordou
de um sono profundo. Olhou em volta e viu tudo escuro. Não lembrava onde
estava, quem era e porque tinha ido parar ali. Forçou a tampa do esquife e
conseguiu sair facilmente. Não teve medo. Nem sabia que tinha sido enterrado vivo.
Viu um pequeno vão com claridade e tentou ir até lá. Passagem estreita. Não
desistiu. Achou um osso jogado em um canto. Usou-o como faca. Dois dias depois
conseguiu uma abertura e deu para sair.
Foi até
o portão. Uma rua escura. Passou fácil. Poucas luzes. Um carro jogou os faróis
acima dele. Freou bruscamente. Ela desceu. Fascinada! Tremia! De novo não. Meu Deus! Jesus amado. Não deixe
acontecer de novo!
... Se encontrares algum cadáver, dá-lhe a bênção da sepultura,
na relação das tuas obras de caridade, mas, em se tratando da jornada
espiritual, deixa sempre "aos mortos o cuidado de enterrar os seus
mortos"...
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