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sábado, 17 de maio de 2014

Pacto de sangue. O sonho de um grande amor.


É brando o dia, brando o vento 

É brando o sol e brando o céu. 
Assim fosse meu pensamento! 
Assim fosse eu, assim fosse eu!


Mas entre mim e as brandas glórias 

Deste céu limpo e este ar sem mim 
Intervêm sonhos e memórias... 
Ser eu assim ser eu assim!


Ah, o mundo é quanto nós trazemos. 

Existe tudo porque existo. 
Há porque vemos. 
E tudo é isto, tudo é isto!


Fernando Pessoa

Pacto de sangue.
O sonho de um grande amor.

                 A noite chegava calma e silenciosa. Não sabia se haveria luar. Agora não me importava com mais nada. Ali naquele banco tosco daquele parque a vida perdera o sentido. Rosa parecia dormitar em meu colo. Devia fechar suas pálpebras, mas não fiz. Era o único elo que me mantinha ali a olhar para aqueles olhos azuis turquesa que nas últimas oito horas me mostraram um outro sentido da vida. Já sentia a rigidez do seu corpo. Uma bala no pescoço a levara para longe de mim. A vida estava se esvaindo. Eu sabia que também ia morrer. Era questão de tempo. Com a bala que passou próximo ao meu coração ou pela própria policia que fizera um cerco em minha volta. Sorria de leve. Minha arma? Um cabo de guarda chuva marrom. Eles? Dezenas gritando para sair com as mãos para cima. Deram-me cinco minutos. Cinco minutos que me fizeram voltar no tempo. Meu grande amor partiu e eu queria partir com ela. Se aguentasse eu sairia correndo com a “arma” a gritar e assim minha vida seria riscada do mapa por centenas de tiros. Lembrei-me do filme Butch Cassidy. Que morte gloriosa. Minha mente procurou no tempo os momentos mais felizes da minha vida. Momentos que não se apagarão na historia. Oito horas. Oito horas sublimes que valeram toda uma vida sem sentido. 

                Tinha sido demitido. Assim sem mais nem menos. Eu sabia do meu câncer no pulmão. Meus chefes não. Não contei. Para que? Para sentirem piedade de mim? Poderia mostrar meus exames. Eles não poderiam me demitir. Mas nunca fui de pedir nada. Aceitava o que vinha sem reclamar. Se não me queriam mais paciência. Sessenta e seis anos, sem conseguir me aposentar. Chorar? Acho que não vale a pena. Nunca casei me uni a uma jovem há muitos anos atrás. Tivemos um filho. Ela conheceu outro e se foi. Foi melhor assim. Para mim e para ela. Nunca fui de ficar revoltado. Todos diziam que eu era calmo, nunca me viram zangado e eu acho que era assim mesmo. Não reclamava da vida. Para que? Pagaram meu Aviso Prévio. Certo. Vá à agência do Banco do Brasil na Avenida Paulista. Lá você recebe seu Fundo de Garantia. Peguei um ônibus da Paulista. Avistei próximo ao Parque Trianon a agencia bancária. Dei o sinal e ao descer pisei em falso. Caí em cima de uma senhora que passava. Pedi desculpas. Perdão. Ela levantou e me vi diante dos mais belos olhos azuis turquesa que já tinha visto na vida.
         
                Os cabelos brancos, um rosto ainda jovem, mas devia ter mais de sessenta anos. Um corpo bem feito. A convidei para um café para me redimir. Aceitou. Sentamos num barzinho em uma galeria que nunca tinha entrado. Afinal passei anos e anos sem ir à Avenida Paulista. Fiquei olhando aquela bela mulher. Seus olhos me hipnotizavam. Meu coração batia. Caramba! Nunca bateu assim por mulher nenhuma. Seu sorriso era confortador, me traziam paz e tranquilidade. Falamos banalidades. Disse que estava desempregado. Ia retirar meu Fundo de Garantia. Ela deu um sorriso maroto. Dinheiro! Para que serve? Nunca me serviu para nada. Vi uma pequena lágrima furtiva naqueles belos olhos azuis turquesa. A convidei para ficarmos umas horas no Parque Trianon. Ela sorriu e aceitou de pronto.

                Olhe, nunca senti em minha vida o que estava sentindo. Nossa! Nesta idade me apaixonar? Toda vez que ela sorria mexia por dentro. Para dizer a verdade não a desejava sexualmente. Nem me passou pela cabeça. Mas meus olhos não saiam dos dela. Chegamos ao parque vazio àquela hora da manhã. Achamos uma sombra gramada, tirei meu paletó para ela sentar-se. Ficamos ali conversando sem ver as horas passar. Parecia que já éramos íntimos de muitos e muitos anos. Eu não tinha pressa. Não tinha ninguém a me esperar. O barracão que morava era alugado. Não tinha quase nada lá. Na periferia. Bem longe. Gostaria que àquelas horas ali com ela não passassem nunca. Contei pouca coisa de minha vida. Nunca tinha casado e a mulher que tive ao meu lado me abandonou. Expliquei que achei melhor assim. Não havia amor entre nós. Meu filho? Tinha seis meses quando ela partiu. Deveria estar agora homem feito.

                  Ela ficou calada por algum tempo. Eu também não disse mais nada. Não deixava de olhar para ela. Uma brisa gostosa acariciava seu rosto e o meu. O sol de vez em quando se escondia entre as nuvens. Estávamos muito perto um do outro. Levei meus lábios a sua face. Ela não se afastou. Beijei de leve seus lábios. Meu corpo tremia de emoção. Ela não esboçou nenhum abraço, mas deixou que a beijasse. Deitei na grama e ela também. Ambos olhando para o céu através das árvores. Uma borboleta pousou em um galho próximo. Ela começou a falar. Eu gostava de sua voz, suave, calma, sem impostação. Contou-me parte de sua vida. Diferente da minha. Bem diferente. Vi que ela era uma mulher de fibra, estudada e eu quem sabe um perdedor. Não seria mulher para viver ao meu lado se tivesse nos conhecido antes.

                  Tivera uma infância atribulada. Seu pai um político conhecido. Quase não dava atenção para a mãe. Colocaram-na em um colégio interno. Mesmo nas férias ela viajava com a mãe e o pai nunca aparecia. Conheceu a Europa, nunca foi aos Estados Unidos. Não tinha interesse. Não que desgostasse dos americanos nada disto, mas ela gostava de ver e sentir a história de perto. E a história está na Europa ela disse. Roma, Veneza, Paris, Madrid, Berlim, Lisboa, tantas que ela perdeu a conta. Quando fez vinte e um anos recebeu uma parte da fortuna do pai. Mais de oitenta milhões de reais. Uma fábula. Não sabia o que fazer com o dinheiro. Encontrou um homem. Lindo, parecia um artista de cinema. Uma paixão avassaladora. Casaram com uma festa de arromba. Seu pai convidou dezenas de políticos. O casamento durou seis meses. Ele fugiu com outra e boa parte de sua fortuna.
                 
                    Ela era simples na sua maneira de contar. Que coisa meu Deus! Estava enfeitiçado por uma mulher da minha idade e eu não tinha nada para oferecer. Deu fome. Convidei-a para um lanche. Voltamos novamente ao barzinho. Local sossegado. Não comi quase nada. Ela mal e mal engoliu alguma coisa. Tomei um uísque e ela também. Vi que chorava. Não perguntei o porquê. Afaguei os seus cabelos brancos. Ela me olhou nos olhos. Quando olhava eu me desmanchava. Voltamos ao parque. Ainda vazio. Era uma terça feira. Agora umas duas da tarde. Ela ainda chorava. Olhou-me e disse que ia morrer. Assustei. Porque? Perguntei. – Rosa sorria agora. Posso pedir para não ter pena de mim? – Claro disse. Tenho leucemia. O médico disse que seria um ou dois meses no máximo. Não quero morrer entubada em um hospital.

                   Pensei comigo que dupla estávamos fazendo. – Contei para ela que também tinha um câncer. Não tinha medo de morrer. Que a morte viesse quando chegasse a hora. Eu ia saber enfrentar. – Ela me perguntou assim sem mais nem menos – Já ouviu falar no casal Bonnie e Clyde? Sim disse. Morreram felizes fazendo o que gostavam. Não entendi – Quer morrer comigo? Ela me olhava com um sorriso zombeteiro. Nunca pensei isto. Morrer como? – Nós dois como Bonnie e Clyde – Continuo não entendo. Explique melhor. – Você não tem de ir ao banco? – sim! – Pois então, entramos você recebe e anunciamos um assalto. Levamos uma quantia, tomamos as armas dos vigilantes e esperamos a policia chegar. Jogaremos o dinheiro para o ar, sairemos rindo e gritando e morreremos crivados de balas!

                 Que ideia estapafúrdia! Morrer assim? Mas ela me olhou com aqueles olhos azuis turquesa que fiquei sem o que dizer. – Olhe, serrei um cabo de guarda chuva, engana bem como uma arma. Entramos você recebe seu dinheiro e eu anuncio o assalto. Tomamos a arma do vigilante, damos uns tiros para cima para assustar e saímos correndo, não antes que eu jogue todo o dinheiro roubado para cima. Será uma festa! – Minha mente estava a mil por hora. Morrer agora? Assim? Ao lado dela? – Ela me beijou. Ali naquele banco do parque, senti seus lábios colados ao meu. Se morresse agora morreria feliz. Um beijo que nunca tive. Lábios macios, molhados, que sensação incrivelmente deliciosa. Olhou-me. Lindos seus olhos azuis turquesa. – Não precisa ter medo - disse. Eu protegerei você lá no céu!

                  Interessante. Entrei no banco sem medo. Cheio. Fui até o caixa. Disseram que tinha de esperar. Ela anunciou o assalto. Todos deitaram no chão. O vigilante levou a mão à arma. Eu disse não. Se tirar morre na hora. Nossa! Eu agora era o Boniee? E a Clyde o que fazia? Pegava o dinheiro do caixa. Ria a mais não poder. As pessoas deitadas no chão não entendiam. Ouvi um tiro, vi o sangue saindo do pescoço dela. Ela me olhou e disse vamos – Jogou o dinheiro para cima. Uma algazarra de todos querendo pegar. Saímos do banco. Outro tiro entrou nas minhas costas passou perto do coração e saiu perto do ombro esquerdo. Não senti dores. Ela não aguentava andar. Carreguei-a. Nenhum policial na porta. Atravessei a avenida sem o sinal abrir. Carros frearam. Batidas, uma algazarra. Ela queria sorrir, uma golfada de sangue saiu de sua boca.

                   Entrei no parque. Ninguém atrás de mim. Fomos para o nosso banco preferido. Um casal estava lá. Gritei para saírem e vendo o sangue correram alameda acima. Deitei-a no meu colo. Ela sorria. Queria falar, mas o sangue não deixava. Com os dedos fez sinal de positivo. Sentia agora uma dor tremenda. Ela tremeu e parou de se mexer. Acho que tinha morrido. Olhava seus olhos azuis de turquesa que permaneciam abertos. Minha mente não pensava em nada agora. Só em olhar para ela. A noite chegou de leve, comportada. A polícia começou o cerco. Achavam que estávamos bem armados. Queria gritar, sair correndo como fez Butch Cassidy. Queria morrer logo crivado de balas para encontrá-la no céu. Minhas pernas não me obedeciam. Uma nuvem começou a se formar. Fechei os olhos dela, dei o último beijo. Meu corpo caiu sobre o dela. Não vi mais nada. Acho que tinha morrido.

                   Os jornais deram a notícia em letras garrafais – Casal de idosos assaltam banco e morrem no Parque Trianon. Mais embaixo dizia – Rosa Allions, filha do senador Norberto Allions já falecido e sua esposa Nair Allions também falecida, e Ramon Silva, endereço desconhecido morreram ontem no Parque Trianon, após fazerem um assalto inexplicável na agência do Banco do Brasil. Não levaram nada, pois jogaram o dinheiro para o alto. Clientes disseram que pareciam loucos, pois ficaram sorrindo o tempo todo. A polícia os cercou no parque e não foi preciso dar um tiro. Encontraram os dois abraçados mortos e sorrindo um para o outro. Uma história de amor? Ele tinha sessenta e seis anos e ela sessenta e cinco. Para ela não havia motivos de assalto. Descobriram que em sua conta corrente tinha mais de cem milhões de reais.

                    A verdade, a história verdadeira nunca seria contada. O porque de um assalto infeliz e claro sujeito a morrer. O porque se ela era rica e não precisava disto. A autópsia mostrou que ela e ele estavam marcados para morrer. Ambos com câncer avançado. Seria este o motivo? Dizem a boca pequena que toda terça à tarde no Parque Trianon um perfume de rosas uma aroma com uma fragrância desconhecida percorre todas as suas dependências. Muitos foram lá para ver, mas poucos amantes tiveram a sorte de sentir aquele perfume sublime! Rosas com amor!

Ela ia, tranquila pastorinha, 

Pela estrada da minha imperfeição. 
Segui-a, como um gesto de perdão, 
O seu rebanho, a saudade minha...


"Em longes terras hás de ser rainha 

Um dia lhe disseram, mas em vão... 
Seu vulto perde-se na escuridão... 
Só sua sombra ante meus pés caminha...


Deus te dê lírios em vez desta hora, 

E em terras longe do que eu hoje sinto 
Serás,  rainha não, mas só pastora  _.


Só sempre a mesma pastorinha a ir,  

E eu serei teu regresso, esse indistinto 
Abismo entre o meu sonho e o meu porvir...


Fernando Pessoa

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