Este
Inferno de Amar!
Este
inferno de amar – como eu amo!
Quem
me pôs aqui n’alma... Quem foi?
Esta
chama que alenta e consome,
Que
a vida – e que a vida destrói.
Como
é que se veio a atear,
Quando
– ai quando se há-de ela apagar?
Eu
não sei não me lembro: o passado,
A
outra vida que dantes vivi.
Era
um sonho talvez... – Foi um sonho.
Em
que paz tão serena eu dormi!
Oh!
Que doce era aquele sonhar...
Quem
me veio ai de mim! Despertar?
Só
me lembra que um dia formoso,
Eu
passei... Dava o sol tanta luz!
E
os meus olhos, que vagos giravam,
Em
seus olhos ardentes os pus.
Que
fez el? Eu que fiz? – não não sei;
Mas
nessa hora a viver comecei...
Almeida
Garret.
Seja bem vindo ao inferno Malaquias!
-
Você soube do Cassandro? Não soube? Fugiu com a mulher do Nequinha. Coitado do
Nequinha, em vez de ir atrás dele ou dar risadas o coitado senta na porta da
sua casa e chora feito uma mulher! – Eu soube, mas é sempre assim. Já foram
épocas que ser macho mesmo era ir atrás e sapecava uns dois tiros na testa do
filho da puta! – Mas será que eles merecem mesmo? Afinal não foi a mulher que
resolveu fugir com ele? – Malaquias sentado na ponta da mesa nada dizia. Sempre
fora assim. Caladão. Sorriso? Ninguém viu. De onde veio e o que fazia para sobreviver
era um mistério. Nunca disse uma palavra quando estavam ali em volta da mesa do
boteco do Virgílio. Milico Barbeiro é
quem contava que ele chegou uma tarde com uma mochila nas costas e perguntou na
Barbearia se alguém sabia de uma casa para vender. – Ali? No Martelo? Um
povoado de merda onde Judas perdeu as botas? Milico vendeu seu barraco no fim
da rua. A única do povoado.
O Zé
Povinho ficou de olho em Malaquias que não deu bola para ninguém e meteu a cara
no seu barraco. Sozinho deu uma melhorada. Comprou umas taboas e fez seus
móveis. Claro ninguém tinha visto, pois ele nunca convidou ninguém para ir lá.
As tardes costumava ir ao Bar, melhor ao boteco do Virgílio e tomava uma ou duas
cervejas. Não bebia cachaça. Mal escurecia ia embora. As comadres diziam que
ele ficava sentado na porta do barraco com um lampião a gás lendo. O que ele
lia? Ninguém sabia. Interessante de vez em quando ele desaparecia. Cinco ou dez
dias fora. Sumia e ninguém via quando ele ia ou chegava. Parecia um fantasma. E
se ele fosse um? – Cruz credo, diziam. Martelo era um povoado, ou melhor,
município de Lagoa Grande. Ficava a mais de setenta quilômetros de distância.
Nunca recebeu nenhum beneficio, mas se orgulhavam de nunca terem pagado o
imposto da prefeitura.
- Por
favor, Malaquias, não me mate! Eu juro por Deus que lhe pago o dobro! –
Malaquias o olhou bem nos olhos. Não tinha volta, não tinha perdão. Quando
Zózimo pedia e pagava Malaquias não discutia. Nem conversou com Bodoin. Não
tinha o que falar. Meteu-lhe dois balaços entre os olhos. Morreu na hora. Ele
gostava disto. Morte sem dor dizia para sim mesmo. Nunca perguntava o que o
outro fez. Não lhe interessava. Contrato é contrato e tem de ser respeitado.
Para falar a verdade não gostava do Zózimo. Homem falso, sem palavra, sorriso
de idiota, mas não era nada disto. Malaquias sabia que ele cumpria ordens do Bicheiro
Castanha. Homem rico. Dono de todas as bancas no Estado. Quando alguém resolvia
entrar sem ser convidado ou então falasse o que não devia Malaquias era
chamado.
Malaquias não gostava do seu passado. Nasceu num puteiro. Sua mãe morreu
jovem de doença venérea. Dona Marquesa foi quem o criou. A dona da boate. Aos
quinze anos se mandou. Caiu no mundo. Sofreu poucas e boas. Com dezesseis
matava para roubar. Fora preso algumas vezes. Sendo menor de idade era sempre
solto. Resolveu crescer no mundo do crime. Ficar matando atrás de uma esquina
por cem ou trezentos reais era muito pouco para ele. Foi Zózimo que lhe
ofereceu o primeiro contrato. Não escrito é claro. – Olhe Malaquias já dizia a
Amanda Rodrigues que ninguém transforma um demônio em um anjo, mas um anjo pode
virar demônio facilmente e deu belas gargalhadas. – Malaquias não entendeu. Mas
ele sabia que um dia teria de matar o Zózimo. Ele sabia demais de sua vida. Seu
primeiro trabalho lhe rendeu dez mil. A partir daí não aceitava nada por menos
de vinte. Matou um cara na divisa com o Paraguay por cem mil reais. O cara era
o delegado de lá.
Não
podia morar na capital. Seria perigoso para ele. Um dia passou por Martelo. Era
o lugar ideal. Disse ao Zózimo que quando precisasse dele enviasse uma cartinha
para sua caixa postal. Bastava escrever: - Saudades de você amigo! - Caixa
Postal? Disse o Zózimo. – Isto mesmo, em Lagoa Grande. – É lá que você mora? - Não,
mas passo lá uma vez por semana. Zózimo não perguntou. Sabia que Malaquias não
ia dizer mais nada. Malaquias podia ter feito uma casa enorme. Nada disto. Se
fizesse despertaria suspeita. Ele lembrou-se de um matador que conheceu que
disse para ele – Malaquias, um poeta Charles Caneia disse um dia - O que você
chama de coincidência, sorte e azar é à maneira de Deus ou do Demônio se
manifestar. Lembre-se a vida é um demônio disfarçado de um lindo anjo mal!
Malaquias entendeu o recado.
Teve uma tarde que a mesa no Boteco do Virgílio tinha mais de oito
cachaceiros. Até o Neco o padeiro da cidade metido a santo apareceu. Encheu
Malaquias de pergunta. Malaquias não disse nada. Saiu do boteco e foi embora.
Todos em volta da mesa se assustaram. – Neco! Não se faz perguntas assim! –
Porque não? Porque você não o conhece! – Neco foi para sua casa preocupado.
Caralho! Porque não fiquei de boca fechada? A rua estava deserta. Era assim o
Martelo. Fazer o que a noite? A luz fraquinha nem iluminava onde passava. Não
tinha cinema nada. Só o boteco do Virgílio. Uma sombra passou por ele. Sentiu
um cano de revolver na nuca. – Se você um dia me perguntar mais alguma coisa,
vai fazer companhia ao Demônio nas prefundas dos infernos! Neco se borrou todo.
Gemeu baixinho pedindo a Deus que o socorresse. Não viu ninguém perto dele. O
cara era uma alma do outro mundo.
Ele estava ali na sala onde ela morava. Nunca tinha visto, nem sabia
quem era e nem queria saber. Zózimo lhe dera o dinheiro e o endereço. Só pediu que cortasse sua garganta e lhe
disse para nunca tentar um homem como o Bicheiro Castanha. Malaquias não
gostava de matar mulher. Matou algumas para roubar, mas achava que estava se
defendendo. Não discutiu com Zózimo. Não era do seu feitio. Matador é assim.
Recebe o pagamento, mata e esquece. Chegou cedo a casa dela. Vazia. Só a noite
ela chegou. Ficou preocupado. Parecia ser uma menina. Não tinha mais do que
dezesseis anos. Cabelos dourados. Raquítica, um metro e meio no máximo. O que
Zózimo esperava de uma menina como essa? O que ele fez para ser apunhalada no
pescoço? Ele sabia que não devia perguntar e nem fazer conjecturas. Um matador
não faz isto. – Ela o viu com um punhal na mão. Seus olhos arregalaram. – Foi o
Zózimo quem mandou? Pelo amor de Deus!
Não me mate. Juro que farei tudo que você quiser!
Pela primeira vez em sua vida Malaquias não soube o que fazer. Devia
meter-lhe logo o punhal no pescoço, ver o sangue espirrar e ela berrar de dor e
dar o recado de Zózimo. Foi pago para isto. Pegou-a pelos cabelos. Ela não
gritou mais. As lagrimas secaram seus olhos.
– Só disse o seguinte: Vou me encontrar com você no inferno! Espero você
lá! – Malaquias sentado na porta de seu barraco não sabia se estava arrependido
ou não. Ela chegou à porta e disse que o jantar estava pronto. Morava com ele,
mas não era sua mulher. Não deitava com ele. Uma menina. Isto ele não faria
nunca. Sabia que agora estava marcado para morrer. Zózimo não iria perdoar.
Iria remover céus e terras até encontrá-lo. Não estava arrependido. Poderia ter
fugido dali e se embrenhado em matas do Mato Grosso ou do Pará. Quem sabe
algumas das Guianas seria um paraíso para ele morar.
Sabia que tinha uma boa reserva financeira. Mais de oito milhões de
reais. Uma fortuna para ele viver bem o resto da vida. Mas iria ficar ali e
esperar o Zózimo. Ele viria pessoalmente. Seria sua “vendeta” ele sabia que era
normal. Matador cumpre ordens caso contrário outro matador acaba com ele. – Uma
tarde falou com a menina dos cabelos dourados: - Zózimo vai vir atrás de nós.
Não vou fugir. Se você quiser ir embora fique a vontade. – Ela nada disse.
Continuou ali ao lado dele. O Povoado de Martelo notou a presença dela. Mesmo
não saindo de casa. Os comentários e buchichos se multiplicaram. – Uma menina!
Uma menina! Ele é um pedófilo! – Mas ninguém dizia isto para ele. Sabiam o que acontecera
com o Padeiro Neco. O cara era um perigo. Carne de pescoço! Alguns diziam que
ele era o Demônio escondido ali para pegar um ou outro do povoado.
Era cedo quando uma BMW 760 LI entrou no povoado. Parou em frente ao boteco
do Virgílio. Um homem atarracado de terno preto desceu e perguntou se alguém
conhecia o Malaquias. Virgílio tremeu. Fazer o que? Mostrou onde era a casa. O
carro foi em frente e parou no local indicado. Desceram quatro homens de terno.
Chapéu atolado na cabeça para ninguém ver seus rostos. Ficaram lá uns dez
minutos e saíram. Voltaram. No boteco Virgílio disse não saber onde ele tinha
ido. Costumava pescar na curva do rio. Lá foram eles. Duas ou três horas se
passaram. Ouviram barulhos de tiros. Muitos. Meia hora depois o carro passou na
rua principal de Martelo. A menina loira dos cabelos dourados dirigia. Mais
ninguém. O que houve? Ninguém sabia e ninguém nunca perguntou. Dois dias depois
eles viram Malaquias e a moça novamente na casinha.
O sossego durou pouco.
O que aconteceu ali seus oitocentos habitantes tiveram mil histórias para
contar. Eram mais de quinze veículos. Eram Ranger Rover, Toyota, SUV de todos
os tipos. Cheias de homens de terno e mal encarados. Fecharam as portas da
cidade. Ninguém sai ninguém entra. Já sabiam onde Malaquias morava. Nem bem
dois desceram de uma SUV e cada um recebeu uma condecoração no peito. Balaços
sangrentos sem retorno. Passaporte para o inferno! Um tiroteio infernal. Ao
amanhecer a rua cheia de mortos. Os engravatados jaziam ali na poeira do
Martelo, como se fossem festejar o maior baile funk de todos os tempos. Claro
junto aos capetas e demônios no lugar merecido. Um silêncio enorme abateu sobre
todos. Ninguém se mexia. Lá no inicio da rua vinha Malaquias e a moça dos
cabelos dourados.
Nenhum deles falou nada. Malaquias com a mesma mochila que chegou ali um
dia. A moça sem nada na mão. Quando sumiram na curva da estrada foram
contabilizar os mortos. Mais de vinte e uns dez ainda vivos precisando de
socorro médico. Ninguém se mexeu. Era como estivessem mancomunados com
Malaquias. Deixaram-nos morrer a mingua ali no meio da rua sob um sol
escaldante e inclemente. Martelo ficou famoso. Repórteres, televisões, jornais
até gente do exterior. – O que foi? Como foi? Como era Malaquias? E a moça dos
cabelos dourados? Ninguém abriu a boca. Delegados, detetives, homens do serviço
secreto e nada. Não conseguiram arrancar um naco deles. Todos juravam que não
sabiam de nada.
Naquela azáfama todo um homem parecia estar misturado à multidão.
Ninguém o reconheceu. O Bicheiro Castanha era assim. Invisível para todo mundo.
Olhou seus homens mortos. Paciência. Não tinha amizade com ninguém. Para isto
foram bem pagos. Agora mais de trinta homens morrerem nas mãos de um só? Uns
bostas isto sim! Quem era Malaquias? Tinha parte com o demônio? Bem ele agora
não podia fazer nada. Sabia que dificilmente os encontraria novamente. Esta
história que mundo é pequeno para nos dois é balela. Tudo bem para Malaquias. Ele foi mais esperto,
mais valente, mas não sabe com quem se meteu. Ele sabia que mais cedo ou mais
tarde Vanessinha iria cortar sua garganta como fez com sua filha Naná. Não
conseguiu a vingança que queria, mas tudo bem. Vanessinha um dia ia ter o que
merecia. Seus quinze anos não iriam enganar por muito tempo e o tempo? Ah! O
tempo. Ele sempre foi o aliado dos calmos, pois os apressados não sabem que o
melhor é comer devagar, deixar a carne na brasa até ficar no ponto.
Como era mesmo o que dizia
Abraham Lincoln? Ah! Sim, ele dizia que você pode enganar uma pessoa por muito
tempo; algumas por algum tempo; mas não consegue enganar a todas por todo o
tempo. As surpresas da vida estão em cada esquina. E olhem ninguém nunca mais
soube de Malaquias e Vanessinha. A loira dos cabelos dourados. Nem mesmo
aqueles jacarés do Lago do Suplicio na divisa com a Venezuela souberam de quem
era as carnes pudentas e brancas que foram jogadas para eles. Nem repararam nos
cabelos dourados cor de mel!
Quando eu morrer.
Quando eu morrer e
no frescor de lua
Da casa nova me quedar a sós,
Deixa-me em paz na minha quieta rua...
Nada mais quero com nenhum de vós!
Quero é ficar com alguns poemas tortos
Que andei tentando endireitar em vão...
Que lindo a Eternidade, amigos mortos,
Para as torturas lentas da Expressão!...
Eu levarei comigo as madrugadas,
Pôr de sóis, algum luar, asas em bando,
Mais o rir das primeiras namoradas...
E um dia a morte há de fitar com espanto
Os fios de vida que eu urdi, cantando,
Na orla negra do seu negro manto...
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