Cantiga para não morrer
Quando você for se embora,
moça branca como a neve,
me leve.
Se acaso você não possa
me carregar pela mão,
menina branca de neve,
me leve no coração.
Se no coração não possa
por acaso me levar,
moça de sonho e de neve,
me leve no seu lembrar.
E se aí também não possa
por tanta coisa que leve
já viva em seu pensamento,
menina branca de neve,
me leve no esquecimento.
Menina
Maria sem pecado e sem ódio no coração.
Eram doze
irmãos. Uma escadinha que começava com Vania de seis até Marilda que tinha 19. Todos
só conheciam o pai. A mãe morrera há tempos. Virgo Olho Grande seu pai, era um
homem feio, barbudo, mau e ela nem sabia por que ele ainda dava comida a todos.
Só comida porque roupas todos se viravam quando iam à igreja do padre Aloizio. E
nem sempre podiam. Eram mais de vinte e cinco quilômetros de trilha até a
cidade de Rio Esperança. Todos nasceram sob o jugo de seu pai. Ele praticava o
incesto com todas as meninas. Quando alguma alcança dez anos ele dizia que era
hora do batismo. Quatro de seus irmãos e irmãs eram filhos de Marilda. Quem não
conhecia achava que ela era mulher dele. Fazia a comida e dirigia a casa.
Menina Maria escapou da sanha pedófila dele.
Todos sabiam por quê. Seus olhos. Isto mesmo, azuis, parecido com o da Virgem
Maria da igreja. Seu pai até que tentou, mas ao olhar seus olhos esqueceu-se de
tudo. Era como se estivesse fazendo sexo com uma santa. Achou que devia
descartar Menina Maria. Ela não tinha mais serventia para ele. Dois
Exploradores de ouro passaram próximo ao rancho onde moravam e o pai ofereceu
Menina Maria para eles. – Se vão para Serra Pelada, porque não ter uma mulher
junto? Ela sabe lavar, passar, cozinhar e olhem, tem um belo corpo. Tonico e
Milorde não fizeram de rogado. Compraram Menina Maria por duzentos reais.
De manhã ela
embarcou na canoa deles, e com lágrimas nos olhos despediu com um aceno dos
seus irmãos. Em Pirapora pegaram a Gaiola uma espécie de barca a vapor e foram
até Juazeiro na Bahia. Em nenhum momento Tonico e Milorde ameaçaram tocá-la.
Nem pediram nada. Davam a ela comida e na Gaiola almoçou a comida que serviam a
todos. Tiveram sorte, um caminhão de boiadeiro vazio os levou até o inicio da
rodovia PA-150, uma rodovia estadual do Estado do Pará. Lá esperando carona
viajaram a pé por oito dias. Menina Maria estava esgotada. Agora quando a noite
chegava ela preparava em fogões improvisados almoço e jantar que não passavam
de carne seca farinha de mandioca e uma vez ou outra cozinhava um feijão.
Quando
chegaram à PA 275 uma carona em uma caminhonete os levou até o km 16 e dai em
uma estrada vicinal chegaram à serra Pelada. Menina Maria nunca esqueceu seus
irmãos. Viveu junto com Tonico e Milorde por cinco anos. Fazia tudo para eles e
os considerava como irmãos. Só Milorde um dia tentou estuprá-la, mas a olhar em
seus olhos desistiu. Em uma tarde seu Tarcino a procurou para dizer que eles
estavam mortos. Soterrados quando garimpavam em um buraco onde achavam que iam
encontrar ouro. Menina Maria chorou. Agora estava sozinha. Nenhum dos amigos de
Tonico e Milorde a convidaram a morar com eles. Claro sabiam que ela era ótima
para cozinhar lavar, e que sua comida era muito boa, mas eles ali naquele
inferno precisavam de uma mulher que fizesse tudo inclusive fosse para cama com
eles. Todos tinham medo de Menina Maria e seus olhos da Virgem Imaculada.
Menina Maria
já não era mais aquela donzela que abaixava a cabeça e aceitava tudo que a
mandavam fazer. Sabia que era desejada por muitos e ela também sonhava em
conhecer alguém, que a amasse de verdade e não há visse como uma santa. Queria
um homem que a amasse de verdade, quem pudesse confiar e que faria dela uma
esposa para sempre. Sabia que em Serra Pelada nunca encontraria ninguém. Olhou
na parede onde Tonico e Milorde colocavam o ouro que encontravam e viu que
daria uma boa quantia. Seu Joaquim comprava ouro e ela sabia que era um homem honesto.
Vendeu a ele a metade e aumentou sua casinha e fez dela um restaurante.
Cozinhar não era problema. Em pouco tempo a procura foi tanta que teve de
empregar mais uma pessoa, mais uma e quando assustou eram nove.
Ganhou
muito dinheiro. Tornou-se uma mulher experiente com dinheiro e negócios. Seu
Joaquim ficou seu amigo e dizia para ela – Olhe Menina Maria, venda logo seu
restaurante. Isto aqui não dura mais um ano. Já não encontram ouro e todo mundo
irá embora. Achou um comprador que pagou menos de trinta por cento do que
queria. Tudo bem. Agora era ir embora. Para onde? Voltar onde morava? Tinha
dinheiro no banco, mas de três milhões de reais. Daria sem sombra de dúvida
para iniciar uma nova vida onde quer que quisesse montar seu rancho. Pensou nos
seus irmãos. Pensou no maldito pai que aprendeu a não gostar desde que saiu de
lá. Ela não entendia porque nunca teve ódio dele e nem de ninguém.
Uma
tarde de setembro, Menina Maria chegou em Rio Esperança. Dalí a sua antiga casa
era menos de trinta quilômetros em estrada de terra ou de barco pelo Rio
Jaboti. Entrou em um pequeno hotel o único da cidade. Era ali que ela iria
morar. Procurou o dono e ofereceu a ele Duzentos mil reais. O dono o Senhor
Jacobino não titubeou. Aceitou na hora. Chamou todos os empregados, não mais
que onze e apresentou a nova proprietária. Queria rever seus irmãos e irmãs,
mas não ia sozinha e não chegara a hora. Tinha medo do seu pai e ele podia ser
perigoso com sua chegada. Contratou dois homens que tinham sido policiais e
eles passaram a ser seus seguranças dia e noite. Rio Esperança era um lugar
pacato, simples e com um cabo e três soldados que só prendiam bêbados à noite e
os soltavam no dia seguinte.
Rafael
Campo Grande vivia em Rio Esperança há cinco anos. Nunca ouviu falar em Menina
Maria e quando o buchicho sobre ela começou se interessou em conhecê-la. Que
graça! Pensou. Linda. Quem sabe seria a mulher que procurava? Ele vivia de um
pouco de dinheiro que sua mãe deixara quando morrera. O dia inteiro estava no
boteco de Jesuíno, jogando sinuca ou um baralho num jogo qualquer. Não
apostava. Nunca apostou. Rafael Campo Grande não era mau sujeito. Parecia um
preguiçoso, mas não era. Nunca trabalhou porque ainda tinha uma reserva
financeira e achou que quando acabasse ele iria embora para uma cidade grande.
A turma do bar o incentivava a cortejar Menina Maria e até já havia apostas se
ele conseguiria ou não.
Um dia,
ao passar por ela em uma rua da cidade, se fez de galante. Tirou seu chapéu de
palha, fez uma reverencia e disse – Boa tarde moça! Tenha um lindo dia. Menina
Maria estranhou. Quem era? Quem seria? Nunca o tinha visto apesar de estar a
poucos meses morando em Rio Esperança. Em casa ficou pensando nele. Era um
rapaz bonito, alto, cabelos negros e até sonhou com ele a noite. Um sonho que
ela não costumava sonhar. Erótico. Ele a possuíu. Calmamente. Foi um
cavalheiro. Não a machucou. A beijou em todos os lugares. Ele sentiu em seu
sonho pela primeira vez que poderia ser mulher. Nunca tinha sido. Até agora aos
26 anos ainda era virgem. Acordou suada e sentiu que estava levemente molhada
em suas partes intimas.
Menina
Maria levantava cedo. Tinha hospedes para servir. Verificava na cozinha se tudo
andava bem, olhava as mesas servidas com pãezinhos da padaria do Seu Inácio, os
bolos que Gorete fazia os biscoitos de polvilho que ela mesmo tinha feito no
forno que mantinha no quintal. Gostava de cumprimentar a todos que ali
estivessem hospedados. Seus clientes quase sempre caixeiros viajantes adoravam
Menina Maria. Nenhum tentou se mostrar um Don Juan. Eles olhavam em seus olhos
e logo desistiam. Uma tarde, sentada na varanda Rafael Campo Grande passou
devagar. Parou. Subiu os quatro degraus e educadamente se aproximou dela
fazendo um galanteio. Menina Maria ficou vermelha. Nunca ninguém fez isto com
ela. Seu Arlindo um dos seguranças se aproximou. – Tudo bem Dona Menina Maria?
Ela riu. Sim seu Arlindo.
Começou
ali o namoro. Rafael Campo Grande era um cavalheiro. Nunca tentou nada. Mal
pegava em sua mão nas noites que ficava com ela conversando na varanda do
hotel. Quando a convidou para um cinema a cidade toda comentou. Passaram a ir a
missa juntos. Menina Maria não esqueceu suas irmãs. Estava na hora de ir
busca-las. Comprou ao lado do hotel uma casa e a mobiliou. Nos fundos construiu
dois barracões com mais seis quartos e em todos eles tinham chuveiros e WCs.
Contou para Rafael Campo Grande um pouco de sua vida. Contou que ia buscar as
irmãs. O pai não. Que ele ficasse só ali no mato e morresse. Rafael Campo
Grande se ofereceu para ir junto. Ela agradeceu. Não, obrigado. Chamou os dois
seguranças, pediu para alugarem um barco grande, e mais quatro homens para
proteção. Deixou Gorete responsável pelo hotel e partiu. Acreditava que no dia
seguinte estaria de volta.
Assustou-se
com o que viu quando lá chegou. Cinco irmãs tinham morrido de hemorragia ao dar
a luz. Havia mais oito meninos e meninas pequenos que nasceram de uma de suas
irmãs desde quando ela partiu. Eram agora quinze irmãos. Todos vivendo como
ratos. Sem cama para todos. Ainda bem que Marilda cuidava deles. Coitada de
Marilda. Menos de 35 anos e parecendo uma velha de 60. Alí tinham muitos irmãos
que também eram seus filhos. Ela nem sabia o que era incesto. Seu pai não
estava. Muitos não a reconheceram, mas Vania, Marilda, Josenildo e Alfredo não
tiveram dúvidas. Era Menina Maria. Uma festa. Alegria. Ela explicou sua vida
hoje. Onde estava. Disse que comprou uma casinha para todos eles morarem com
ela na cidade. Só Marilda não quis ir. Disse que se ela não ficasse seu pai
morreria logo. Não iria aguentar ficar sozinho.
Em
menos de uma hora todos estavam no barco. Menina Maria insistiu com Marilda,
mas ela foi irredutível. Chorava muito, mas disse que não ia. Como ia fazer
agora sozinha na casa não sabia. Quando ela ia para barco viu seu pai chegando
e gritando. Ameaça todos que estavam indo embora. Gritou palavrões e disse que
se fossem ele ia atrás, mataria todo mundo. Dois seguranças de Menina Maria o
pegaram e amarraram. Ela mesmo disse a
ele que se aparecesse na cidade seria preso. Ia falar com o delegado o que ele
fazia. Não iria escapar de uns vinte anos de cadeia. Disse a Marilda que quando
o barco partisse ela o desamarrasse. Partiu chorando por Marilda. Prometeu
voltar um mês depois. Não iria deixar ela desamparada. Deu a ela escondido dois
mil reais. Compre o que quiser apesar de que aqui só quando o barco do Jesuíno
passar.
Durante
vários meses Menina Maria viveu feliz com seus irmãos. Rafael Campo Grande a
pediu em casamento. Não sabia o que sentia por ele. Aceitou. Precisava de um
braço a mais para ajudar no Hotel. Casaram-se. Uma decepção. Rafael Campo Grande
não conseguiu fazer amor com ela. Olhe que ele tentou. Não olhava em seus olhos,
mas era como se estive vendo eles em sua mente. Durante meses ele tentou até
que desistiu. Dormiam na mesma cama, se beijavam, abraçavam e nada alem disso.
Menina Maria se conformou. Ia morrer virgem. Seus irmãos e irmãs receberam dela
tudo o que poderia dar. Estudo, roupas não faltou nada.
Rafael
Campo Grande foi um grande amigo. Mais nada. Ninguém se aproximou dela para
quem sabe ter um amante. Seu pai nunca mais apareceu. Uma manhã de sol Marilda
chegou ao hotel. Maltrapilha, suja, sentou na varanda e ficou olhando o
horizonte. Ninguém sabia quem ela era. Um dos seguranças a pegou pelo braço e a
jogou na rua. Tavinho ia passando e viu sua irmã sendo maltratada. Chamou
Menina Maria. Alegria geral dos irmãos. Fizeram uma festa para ela. O segurança
pediu desculpas. Mas mesmo assim foi chamado a atenção. Marilda contou que seu
pai morrera. Acordou com ele gemendo e viu que não dava mais. Ela achou que tinha
pegado malária. O enterrou na curva do rio. Sabia que uma cheia qualquer o
levaria junto às águas barrentas.
Uma
história comum. Sem surpresas. Menina Maria viveu ao seu modo feliz ao lado de
Rafael Campo Grande. Ele se tornou seu braço direito. Fazia de tudo. Foram
inclusive todos eles passar vinte dias no litoral. Ninguém ainda tinha visto o
mar. Uma festa. Menina Maria chorou muito mas de alegria. Rafael Campo Grande
morreu com setenta e dois anos. Menina Maria morreu com noventa e cinco. A
família dela se casou tiveram filhos e na cidade eram bem considerados. Não sei
na eternidade o que aconteceu a Menina Maria. Não sei. Não tem explicação dos
seus olhos de santa. Um dia fui a Rio Esperança. Visitei o hotel onde ela
morou. Conversei com muitos moradores que a conheceram. Ninguém podia explicar
a vida de Menina Maria. Bem nada mais a dizer, a não ser... Que Deus a tenha!
Menina-Moça
A menina-moça sonha...
Sonha com o que a menina-moça?
Com o vestido branco rodado,
com a emoção da valsa no salão enfeitado.
A menina-moça acredita...
Acredita em que a moça-menina?
Na vontade de enfrentar a vida,
na beleza da
noite prometida.
A menina-moça vive...
Vive como a moça-menina?
Como o botão que se transforma em flor,
acreditando num futuro alentador...
A menina-moça sorri...
Sorri por que a moça-menina?
Pela certeza da glória alcançada,
pela alegria da
paixão encontrada.
Nenhum comentário:
Postar um comentário