Vingança
Eu
consigo a incrível façanha
de ser feliz e triste ao mesmo tempo
É que falta uma peça
tão grande e importante
que fica difícil percebê-la
mas ela existe…
e dói saber
Não há fardo maior na vida
do que os malditos sonhos
que te iludem
Eu não quero me vingar da vida
mas parece que ela se vinga de mim.
A doce vingança de Laudivino Centauro
Nuvens
brancas, cinzentas perpassavam pela minha mente em um redemoinho nefasto. Minha
vida mostrava devassidão, corrupção, bandalheira. Este era eu? Não estava me
reconhecendo. Tentava concatenar as ideias e não conseguia. Era como se toda
uma vida fosse passada ali naquela tela imensa um relato do que fui, do que fiz
e sem sombra de dúvida mostrava que eu não era ninguém. Apenas um ser perverso,
maléfico e que a troco de riquezas e poder destruiu muitas vidas e tirou de
quem precisava em benefício próprio. Mas onde eu estava? Tentava lembrar tudo
que aconteceu e só via aquele filme maldito que passava naquela tela gigante me
forçando a lembrar de toda minha vida desde que nasci.
Agora sim.
Estava entendendo. Eu estava em um hospital. Vi-me ali cheio de fios na boca
nas orelhas. Uma parafernália de aparelhos que me faziam respirar. Mas como se
eu não estava lá no corpo? Como não sentia nada? Através do vidro vi Celina
chorando e ela rezava. Sua reza me ajudava. Era pura, verdadeira. Celina, quem
diria! A mulher que nunca pedi em casamento e me foi fiel por toda a vida. Uma
empregada que nunca reclamou de salários nunca reclamou de meus carinhos. Maldito
sou eu. Ficou do meu lado durante todo o tempo sem nada pedir. Celina, a mulher
mais linda do mundo que não soube valorizar. Nunca quis o meu dinheiro, maldito
dinheiro, sim, hoje digo maldito diferente do passado quando corria atrás dele
como o diabo corre atrás das almas perdidas.
Mas onde
estava Fernanda? Afinal foi a ela que dediquei muitos anos para ver se tinha
uma vida feliz. Dei a ela o que queria. Seus sonhos de mulher rica foram
concretizados. Tinha tudo que desejou. Fomos para a Europa, Américas, lugares
que nunca desejei ir e ela adorava e ria, cantava quando estávamos lá. E eu
iludido fazia tudo o que ela me pedia. Mas onde está ela? Não jurou que me
amava? Que a paixão por mim era a única e nunca iria me abandonar? Começava a
lembrar-me de tudo. Não de tudo e sim de uma boa parte. Agora via o caminhão
carregado vindo em minha direção. O volante não obedecia. Parecia que estava
solto. Um monstro a minha frente buzinava alto, parecia dizer – Sai seu burro!
Vais morrer e ir para o inferno onde é seu lugar.
Nem fizera
dezoito anos e sai de casa. Minha mãe chorava e meu pai sério ficou na janela
sem dizer adeus. Ele no seu íntimo sabia o que eu era. Sabia da minha cobiça,
dos meus sonhos de riqueza. Aquela vida que ele deu a mamãe e a mim eu
considerava um lixo. Não posso reclamar tanto. Ele deu para ela uma casinha
simples, limpa, aconchegante. Meu deu estudos ou tentou já que não liguei muito
para isto. Na minha cidade sempre tentei enganar as pessoas. Era conhecido como
um embusteiro, enganador e trapaceiro. Minha mãe sempre chorava quando ia
preso. Mas menor de idade ficava lá pouco tempo. Tinha pinta, as meninas eram
apaixonadas por mim apesar dos pais manterem elas longe. Engravidei umas cinco.
Risos. Problema delas. Quem mandou abrir as pernas? Tudo bem. Menor de idade.
Mas de uma coisa tinha certeza, nunca matei ninguém. Nunca.
No Rio de
Janeiro cheguei com uma mão na frente e outra atrás. Um mendigo que se dizia
cego tentei roubá-lo. Não era cego. Chamou amigos e me deram uma surra
tremenda. Uma ambulância me levou ao hospital. Fiquei oito dias internado.
Arrumei lá algum dinheiro. De madrugada ia aos apartamentos e roubava os
pacientes ricos. Não era muito, mas deu para ficar uns meses em um hotel
enquanto planejava outros golpes. Achei um interessante. Na página de
necrologia dos jornais via os que morreram, procura seus endereços e telefones,
ligava para a empregada pedindo um documento como se eu fosse o gerente do
velório onde ele estava. Enquanto ela corria para levar o documento eu fazia
uma limpeza na casa. Era chamado de rato de velório.
Aprendi
também a não pagar o barbeiro. Pegava um menino qualquer, cortava meu cabelo,
fazia a barba, as unhas e quando terminava colocava o menino para cortar o
cabelo como se fosse o meu filho e dizia que ia tomar um café. Sumia é claro.
Assim fui dando muitos golpes até que um amigo me convidou para ser seu sócio.
Arrematar em um leilão, dez mil fraldas para velhos. Ri dele. E daí? Perguntei.
Simples, montamos uma firma fantasma, entramos em uma concorrência publica em
uma cidade do interior, compramos o responsável pela escolha e dai partimos
para outras concorrências mais fortes. Conheço gente que está rico com isto! E
quando vamos precisar para iniciar? Se tiver vinte mil já dá. Tinha. Foi só o
começo. Ninguém das prefeituras do interior recusavam uma propina. Ganhamos
muito dinheiro.
Comprei
uma casa boa em um bairro de classe media. Celina apareceu um dia pedindo
emprego. Negra, jovem ainda e sempre de cabeça baixa, humilde, simples. Ela me
serviu na casa e na cama. Nunca reclamou. Não sei se fui bom para ela. O
dinheiro que pagava não era nada. Mas nunca reclamou. Disse que não precisava
de nada. O que sobrava guardava na poupança. Prá que Celina? Você é só no
mundo. Não sei respondia. Um dia posso usar. Tudo cresceu mais quando entramos
em uma concorrência em um estado. Desta vez era coisa grande. De cem milhões.
Uma fábula. Ganhamos. Vinte por cento para meia dúzia de safados do governo.
Daí foi um pulo. Outras e outras. Fiquei milionário. Deputados, senadores,
prefeitos e vereadores me bajulavam. Sempre cada um querendo seu quinhão. É
para o partido diziam! Partido. Eu sei que partido. O próprio bolso.
Quando
estava no aeroporto para embarcar para Lós Angeles, conheci Fernanda. Ela
também estava indo para lá. Disse que me conhecia pelos amigos que tinha.
Fernanda era linda, alta quem sabe um e setenta e cinco, seios maravilhosos,
olhos verdes profundos, cabelos loiros naturais. Uma voz rouca, gostosa que
fazia dela a mulher perfeita. No avião ela não estava em minha poltrona. Havia
duas vazias bem atrás. Fiz um sinal e ela foi. Amassos, beijos chupadas. Tudo
terminou no WC do avião. Nunca tinha feito assim. Muito gostoso adorei. Nesta
viagem fomos lá quatro vezes. Cheguei esgotado em Los Angeles.
Ela
aceitou meu convite. Mesmo hotel mesma suíte. O que veio fazer aqui? Perguntei.
– Ela – Passear somente. Acreditei. Sempre fui um sabido com os negócios e um
idiota com as mulheres. Minha missão era encontrar deputados, juízes, senadores
na calada da noite para planejarmos negociatas longe das luzes de holofotes que
se encontram no Brasil. Fernanda ia comigo. Aos poucos se inteirando de tudo.
Os políticos e juízes a olhavam e ficavam loucos por ela. Ela disse-me que os
durões ela amansava. E amansou. Fez sexo com muitos para me ajudar. Um ciúme
enorme. Mas negócios são negócios, amores à parte.
Comprei um
apartamento de cobertura na Vieira Souto no Rio de Janeiro e outro no Morumbi
em SP. Ela gostava mais do Rio. Tudo bem. Ficava em São Paulo a maioria do
tempo. Sempre com a fiel Celina. Grande Celina. Tentou me abrir os olhos e eu
cego achei que era ciumeira dela. Seu Laudivino, ela dizia, Fernanda já esteve
aqui com outro homem quando o senhor Não estava. Eu ria e dizia, são negócios
minha “nega”. Não sei como ela descobriu minha conta na Suíça. Uma grande
quantia tinha lá, acho que mais de duzentos milhões de dólares. Uma fábula. No
Brasil quase nada. Um dia poderiam vasculhar minha conta a vontade.
Tudo
começou a desmoronar quando fui preso de manhã em meu apartamento do Morumbi
pela Polícia Federal. Quantas acusações. Falsidade ideológica (nem sabia o que
era isso), formação de quadrilha, e mais uma dezena de acusações. Deram-me uns
cascudos. Mas foram benevolentes. Não tinha advogado. Liguei para Fernanda e
pedi que escolhesse o melhor de todos. O preço não importava. Ela escolheu o
pior. Não me tirou da cadeia. Através deste advogado arrumei outro. Conseguiu
um Habeas Corpus. Solto voltei ao apartamento. Vazio. Roubaram tudo. Foi
Fernanda eu fiquei sabendo. E Celina? Perguntei ao porteiro. Não sei me disse.
Fernanda a pôs para fora do apartamento. Ela sempre ficava aqui sentada no meio fio
esperando o senhor. Não veio ontem nem hoje. Já ia embora quando a vi. De
cabeça baixa, chorando. O que será de mim senhor Laudivino sem o senhor? Calma
Celina. Calma, vamos resolver tudo.
Mas tudo
estava indo para o brejo. Ainda bem que no Banco Itaú e no Bradesco tinha uma
merreca. Comprei um notebook e uma surpresa. Não tinha nenhum tostão nos bancos
suíços. Tinham sido surrupiados. Consegui em quatro bancos mais de trinta mil
reais. Mal deu para pagar o advogado. Procurei uns amigos. Todos me viraram as
costas. Coloquei a venda o apartamento do Morumbi, o mesmo ia fazer com o da
Vieira Souto. Não estava mais no meu nome e sim no de Fernanda. – Então foi
ela! Dei tudo que queria e não ficou satisfeita? Deve ter descoberto minha
senha e retirou nos bancos suíços. Maldita, pensei, vai pagar em dobro!
Aluguei uma
casinha na Lapa, pedi a Celina para tomar conta e fui ao Rio de janeiro.
Encontrei Fernanda. Junto o Laureano. Um antigo Deputado Federal que foi
cassado. Agora eram amantes. Laureano me ofendeu. Que eu sumisse da vida deles.
Juraram-me de morte. Morte? Quem ia morrer eram eles.
À tardinha de novo a Federal. Disseram que eu estava cerceando
testemunhas. Mas não me prenderam. Só disseram para tomar cuidado. Um delegado
dos mais novos ao pé do ouvido me disse para ficar de orelha em pé. Muita gente
querendo me ver morto. Muitos figurões. Voltei a São Paulo de carro. Quando
passei por Resende notei uma folga no volante. Esperei o próximo posto. Lá
veria o que era. Antes da entrada de Itatiaia o carro dançou na pista, não
consegui dominar, invadiu a pista contrária e bati de frente a uma enorme
carreta que estava a mais de cem por hora.
Estou me
vendo ali na cama, cheio de fios, e no vidro chorando estava Celina. A única
companheira de verdade. Fernanda eu sabia que não viria. Devia estar festejando
com Laureano em algum lugar do Rio de Janeiro. Malditos. Tinha de me vingar.
Minha mente só pensava em vingança. Notei ao meu lado dois homens vermelhos, como
se estivessem queimando. Exalavam um mau cheiro parecendo enxofre. Nós ajudamos
você disseram. Nosso mestre tem poderes e se os quiser mortos o faremos. Em
troca vai conosco. Fechei os olhos. Tinha lido histórias de pacto com o
demônio. Eles estavam me oferecendo um? Valeria a pena? Olhei para Celina no
espelho. Ela rezava. Sua reza chegava até a mim. Dizia para me arrepender dos
meus pecados que estavam passando na tela grande a minha frente. Eram muitos.
Não sei se Deus iria me perdoar.
Os dois
homens vermelhos começaram a me arrastar. A reza de Celina bateu fundo no meu
coração. Comecei a rezar também. Chorava, um clarão apareceu. Vários homens e
mulheres de branco. Junto meu avô que só me lembrava dele quando tinha cinco
anos depois ele morreu. Pegou no meu braço e disse – Venha comigo meu neto
querido. Levou-me rumo aos céus. – Laudivino meu filho, você cometeu muitos
erros, prejudicou muita gente, mas Deus se apiedou de sua alma. Você vai ter
que trabalhar em dobro para recuperar o que perdeu em suas ultimas andanças na
terra. Alguém me levou para uma cidade cinzenta, onde todos choravam e gemiam.
Uma mulher me abraçou e disse, vamos trabalhar meu amigo, aqui tem muito
trabalho a fazer. São espíritos que precisam de nossa ajuda. Vieram das zonas
inferiores. Aqui não vais ter folga, não vais ver o céu azul, só dores e
sofrimento.
Ainda
recebo as boas rezas de Celina. Elas me ajudam muito. Aos poucos fui esquecendo-se
de Fernanda. Não pensava mais em vingança. Minha alma estava em paz. O Chefe da
cidade me chamou. Venha me ajudar. Fiquei contente ia sair da cidade em que
estava por anos a fio. Um trabalho incessante. Fomos a uma casa simples. Lá estava Fernanda, gritando. Laureano tinha
atirado nela por uma discussão boba. Estava morta. Desencarnada. Gritava,
queria ver morto o Laureano. Aproximei-me. Ele me viu e se assustou. Dei a mão a
ela. Venha minha amiga, vamos a uma cidade onde poderemos trabalhar muito. Você
vai gostar de lá. Ela se calou. Olhou nos meus olhos, não viu vingança viu
amor. Um amor diferente do qual ela nunca teve. Ouvi o sorriso de Celina, na
terra ela continua a horar por nós dois.
Lágrimas tristes tomarão
vingança
Se somente hora alguma
em vós piedade
De tão longo tormento se
sentira,
Amor sofrera, mal que eu
me partira
De vossos olhos, minha
saudade.
Apartei-me de vós, mas a
vontade,
Que por o natural na
alma vos tira,
Faz-me crer que esta
ausência é de mentira;
Porém venho a provar que
é de verdade.
Ir-me-ei, Senhora; e
neste apartamento
Lágrimas tristes tomarão
vingança
Nos olhos de quem fostes
mantimento.
Desta arte darei vida a
meu tormento
Que, enfim, cá me achará
minha lembrança
Sepultado no vosso
esquecimento.
Luis Vas de Camões
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